Pesquisa investiga atuação de cantoras e atrizes teatrais no movimento abolicionista brasileiro
Pesquisa investiga atuação de cantoras e atrizes teatrais no movimento abolicionista brasileiro
O projeto foi contemplado com bolsa de produtividade na Chamada Pública nº 18/2024.A professora Silvia Cristina Martins de Souza, do Departamento de História (CLCH) da UEL, começou a pesquisar a História Social do teatro brasileiro há mais de 30 anos e há 25 recebe apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisou literatura dramática, entre outros temas, até adentrar em um ainda periférico na historiografia do teatro e do movimento abolicionista brasileiro (1879-1888), que envolve a participação de cantoras e atrizes na luta pelo fim da escravidão. O projeto foi contemplado com bolsa de produtividade na Chamada Pública nº 18/2024.
Para muito além de contar a história do teatro, seu objetivo é compreender as práticas cotidianas e as relações sociais, que incluem aspectos do trabalho nos palcos e as relações de poder nos bastidores, jogando luz sobre a participação destas e de outras mulheres que se alinharam ao movimento. Nesta perspectiva, Silvia quer evidenciar as origens sociais, nacionalidades, visões de mundo e experiências de vida das personalidades recorrentemente identificadas em livros de memórias e publicações de jornais pela expressão “senhoras abolicionistas”. Os achados mostram um grupo diverso, formado por mulheres oriundas das classes trabalhadoras e até da mais alta nobreza.

“Eu quero saber quem são elas e é muito interessante porque você percebe que são mulheres novas e mais velhas, pretas e brancas, brasileiras, portuguesas e espanholas, ou seja, o abolicionismo agrega muito essas pessoas e o que dá pra perceber é que elas irão associar as lutas dos escravos às lutas delas, como por maior espaço público”, diz.
Elenco
Com foco nas artistas da época, ela vem mapeando registros de nomes importantes, alguns já muito conhecidos no campo das artes, como a compositora e pianista Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chiquinha Gonzaga. Primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, ela possuía raízes negras e, ao mesmo tempo, uma pessoa escravizada em casa. “Ela, quando separou do marido, eles tinham uma escravizada. A escravizada era dela também e ela deu a alforria. Depois de separada, o marido entrou com processo contra ela para reverter e não conseguiu”, conta a professora.
Outra personagem que atuou muito pelo fim da escravidão foi a atriz e cantora lírica Esther de Carvalho, uma judia portuguesa que veio para o Brasil em 1881, vindo a morrer dois anos depois, em decorrência da febre amarela. “São mulheres muito interessantes. Teve uma atriz francesa – Suzana Castera – e as mulheres que eram atrizes francesas eram chamadas abertamente nos jornais de ‘meretrizes’, ‘prostitutas’, e elas fizeram várias conferências para a compra da alforria e numa dessas que ela organizou, ela foi obrigada a sair do teatro porque as boas famílias não queriam ficar perto dela”, conta.
Silvia ainda cita artistas com perfil diferente, caso de uma cantora lírica que acabou sendo apelidada de “rouxinol abolicionista”. A dona da bela voz que lhe rendera o apelido era Maria Luiza Regadas, vinda de uma família católica e herdeira de uma fortuna erguida justamente com o tráfico negreiro. “Ela se apresentava em igrejas, entrou no teatro e se transformou numa figura muito importante neste momento”, diz.

Em suas pesquisas, a professora encontrou registros sobre mulheres que atuaram como empresárias das artes cênicas na época, caso da própria Ester de Carvalho e da atriz Ismênia dos Santos. Dentre os registros encontrados aparecem menções a eventos e conferências realizadas sempre em teatros, o que abriu alas para a classe artística se aproximar ainda mais do movimento abolicionista. A professora também ressalta o papel do teatro como veículo de transmissão da informação antiescravagista, e que possuía um alcance ainda maior em comparação com jornais. “Ele (o teatro) não demanda de você habilidade para ler e grande parte da população era analfabeta. Como chegar a eles? Pelo palco”, responde.
Em cena
O texto que marca o início da campanha abolicionista na dramaturgia brasileira é intitulado “Os dois ou o inglês maquinista” e foi escrito por Martins Pena. Encenado em 1845 no Rio de Janeiro, o espetáculo traz uma fala que já denunciava o desgosto de parte da população com a violência endereçada às pessoas escravizadas. A cena é protagonizada pela personagem Clemência e se passa na sala de casa. “Eu não gosto de dar pancadas”, diz ela aos convidados após chicotear duas escravizadas que haviam quebrado louça na cozinha.
Outra obra importante é “O marujo virtuoso ou os horrores do tráfico da escravatura”, de João Julião Federado Gonnet, francês radicado no Brasil. O espetáculo de Gonnet chegou a ser combatido pelo Conservatório Dramático Brasileiro (CDB), entidade fundada em 1843 por escritores, jornalistas e poetas, mais tarde instrumentalizada pelo governo imperial como órgão de censura.
No entanto, o espetáculo de maior repercussão foi o “Demônio familiar”, do cearense José de Alencar, que estreou no Rio de Janeiro em 1857 e foi apresentado no Teatro D. Maria II, em Lisboa, em 1860. Trazendo um protagonista negro pela primeira vez, “Demônio familiar” narra a história de Pedro, um arteiro escravo doméstico que causava muita dor de cabeça aos seus senhores. Ao final, é “castigado” com a alforria e precisa seguir um novo rumo.
Conforme as pesquisas, Pedro era interpretado por um ator branco que pintava a pele, um dos poucos casos naquele momento de uma prática hoje conhecida como “blackface”, quando pessoas brancas pintavam os rostos com objetivo de zombar ou ridicularizar pessoas negras para o divertimento de plateias brancas, algo muito comum em programas de TV até poucas décadas atrás.
“José de Alencar era um abolicionista entre aspas. Ele dizia que a escravidão era ruim para o senhor, não para o escravo. Ele era a favor que os senhores dessem alforria aos escravos para se livrar, porque aquilo era um mal. A peça foi um sucesso e foi um ator branco que se pintou de preto, só que isso não se fala nos jornais, você tem que ir pelos indícios”, explica a professora.
(*Assessor Especial na Coordenadoria de Comunicação Social).