A morte do eu, do meu e do teu
A morte do eu, do meu e do teu
Professor sênior se dedica ao estudo da morte na Literatura, mas acabou extrapolando para outras formas de arte.A exemplo do que ocorre com outros docentes, o professor Alamir Aquino Corrêa se aposentou pela UEL (2019), mas se mantém como professor sênior, atuando no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL). Com Doutorado na Espanha, e três Pós-doutorados (Canadá, EUA e Espanha), Alamir é daqueles professores que olha para o mundo e automaticamente pensa em sua pesquisa. Em seu caso, é particularmente fácil, porque ele se dedica há mais de 20 anos ao estudo da morte na Literatura.
Alamir conta que tudo começou em 2001, quando ele participava de uma reunião de pesquisadores em Colônia (Alemanha). Em visita a museus e outros espaços naquele país, ele viu representações do Homem de Neandertal e várias pinturas retratando a peste negra, além de cadáveres expostos. Foi o impacto desta experiência que o impulsionou para o tema da morte. “Nós nos preocupamos demais com a morte, e tentamos nos afastar dela. Por outro lado, cemitérios e catacumbas são pontos turísticos e de curiosidade humana”, comenta o professor. O Cemitério da Recoleta (Buenos Aires) e as catacumbas de Paris são dois dos inúmeros exemplos de locais que atraem centenas de milhares de visitantes todo ano no chamado necroturismo.
Na Literatura, o pesquisador lembra que o primeiro grande texto a abordar a morte e as consequências para quem fica vivo é a Epopeia de Gilgamesh, um escrito sumério datado do século XX antes de Cristo. Outro destaque vem do dramaturgo grego Sófocles (século V a. C.), autor de Édipo Rei e Antígona, narrativas de mortes trágicas.
No PPGL, Alamir ministra uma disciplina no Mestrado, oferecida a cada três semestres, intitulada “Formas e Motivos”, na qual realiza explorações temáticas, como a morte e o feio nas obras literárias. Cada turma tem entre 18 e 25 alunos. Segundo ele, as turmas têm surpreendido com a vontade de debater e principalmente com os testemunhos, já que todos levam para a sala de aula experiências com a morte, mais ou menos diretamente. Resultado: já foram mais de 10 turmas, que geraram 11 dissertações e 6 teses. “E vem mais”, acrescenta o professor.
Com isso, o pesquisador acabou ampliando o foco, para estudar a morte não apenas na Literatura, mas também em outras artes, como a Pintura e a Arquitetura. “Ela foi a primeira grande arte que ‘absorveu’ a ideia da morte, com as estruturas e suas significações”, diz. E explica: Um cemitério é, em seu sentido último, um lugar para dormir, até que chegue a hora de levantar novamente. Já “catacumbas” quer dizer “entre tumbas”, ou seja, lugares de morte definitiva.
Ordem no caos
Com a morte lá em qualquer direção em que se olhe, Alamir estabeleceu alguns critérios para determinar qual a leitura e qual o estudo a seguir. Chegou então a três categorias de morte nas artes: do eu, do meu e do teu. Exemplo do primeiro é o conhecido poema do romântico Álvares de Azevedo, intitulado “Se eu morresse amanhã” (publicado em 1853, postumamente), cuja primeira estrofe diz: “Se eu morresse amanhã, viria ao menos/Fechar meus olhos minha triste irmã;/Minha mãe de saudades morreria/Se eu morresse amanhã!”.
Um exemplo da morte do “meu” é a música “Naquela mesa” (1972), de Sérgio Bittencourt, dedicada a seu pai, Jacob do Bandolim, que diz: “Se eu soubesse o quanto dói a vida/Essa dor tão doída não doía assim/Agora resta uma mesa na sala/E hoje ninguém mais fala do seu bandolim/Naquela mesa ‘tá faltando ele/E a saudade dele ‘tá doendo em mim”.
Outros exemplos mencionados pelo professor são Dom Casmurro (Machado de Assis), Paulo Honório (de “São Bernardo”, de Gracialiano Ramos) e Riobaldo (Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa). A terceira é a morte do “teu” e envolve a ideia de alteridade e empatia, e neste aspecto a Literatura empresta ideias da Psicanálise.
Paralelamente, o professor Alamir fala em uma outra categoria: aqueles que estão para morrer. A expressão é conhecida desde a Roma Antiga, quando os gladiadores cumprimentavam o imperador com o brado “Ave Cesar, morituri te salutant”, ou seja, “Ave César, aqueles que estão para morrer o saúdam”. Na Literatura, o professor cita “O Diário de Anne Frank”.
Tem mais: o conceito de “deixado”, comum em casos de genocídios e holocaustos. A obra “É isto um homem” (1947), o autor Primo Levi, italiano de origem judaica, é um exemplo. Levado de trem a Auschwitz, ele sobreviveu, mas muitos outros nem chegaram vivos ao campo de concentração. Alamir explica que nestes casos entra a chamada “culpa do sobrevivente”, um processo de luto cheio de culpa, do questionamento de ter sobrevivido quando tantos outros morreram, normalmente de forma violenta ou trágica. O professor lembra que este processo implica numa forma de “morte” e que superar a condição é como nascer novamente.
Já na literatura contemporânea, o pesquisador exemplifica com a obra “O pai da menina morta” (2018), de Tiago Ferro, que narra o processo de luto pela morte da filha de oito anos. A ficção mescla trechos de diários, e-mails, mensagens de aplicativos, com textos literários e letras de músicas sobre tal perda.
A lista de obras e autores de Alamir é muito extensa. Ele mencionou escritores românticos, realistas, poetas do século XX, Shakespeare, Assis Brasil (Piauí), Lygia Fagundes Telles, Tolstoi, Drummond, Cornélio Penna, entre outros.
Enfim, existe uma infinidade de exemplos e percepções, e tem sido um desafio ao pesquisador lidar com todos eles. Só para dar um exemplo na Pintura, ele cita “O primeiro luto” (1888), do pintor francês William-Adolphe Bouguereau (1825-1905), que retrata Adão e Eva chorando por Abel morto. Alamir interpreta que eles choram tanto pelo filho vítima quanto pelo assassino, e pelo fim violento do próprio futuro. E vale mencionar que o pintor havia perdido um filho pouco antes.
O que fazer com os mortos?
O professor Alamir observa ainda um outro ponto: o que fazer com os mortos? As pessoas não querem contato com eles. O livro “A solidão dos moribundos”, do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) trata disso: os vivos não conseguem lhes demonstrar afeto justamente quando este se faz mais necessário. E em viagem à Grécia, o pesquisador viu que não há mais lugar para enterrar os mortos, por isso existe um incentivo à cremação e a prática de trasladar os ossos, depois de um período determinado, para longe. Já se fala até em compostagem dos restos. Ou seja, os vivos têm compromisso com os mortos mesmo muito tempo depois, porque estes ainda são sujeitos de questões religiosas, éticas, sanitárias e jurídicas, entre outras.
Tais questões vão mais além, com o Estado, e não a Natureza, regulando quem está vivo e quem está morto. Duas situações ilustram a ideia: primeiro, as milhares de pessoas que precisam obrigatoriamente fazer a chamada “prova de vida”, ou seja, provar ao governo que estão vivas, para continuar recebendo um benefício do INSS. Em 2019, um senhor de 90 anos, muito debilitado, foi carregado até uma agência bancária, na Lapa (PR). Não aguentou o esforço e morreu quatro dias depois.
O segundo exemplo é o da pessoa que, por algum equívoco, foi declarada morta e expedida uma certidão de óbito. Ela deverá provar com papéis que está viva. No outro extremo, há a peça de Dias Gomes, “O Bem-amado” (1962). Ali, a caricatura de prefeito, Odorico Paraguaçu, enfrentava um problema oposto: queria inaugurar um cemitério, mas ninguém morria.
A pandemia recente também mexeu com todos, neste aspecto. Para Alamir, ela revelou muitas falhas dos seres humanos. Demonstrou como a Ciência precisa de apoio, mas ainda vai levar um tempo para a arte retratar o ocorrido, porque ainda é muito recente. Porém, foi um período difícil para o processo de luto, pois velórios e enterros foram proibidos por um tempo. Não houve o rito de despedida adequado. “Como aceitar a morte de alguém sem o corpo para se despedir?”, indaga o pesquisador.
Grupos
Felizmente, se o trabalho é hercúleo, Alamir não está sozinho. Ele conta que troca ideias com um grupo de pesquisadores da PUC-MG e outro da Bahia, e fala ainda de um grupo que estuda o suicídio na Literatura, em Campo Mourão. Ainda assim, o professor afirma que, no fundo, o trabalho de pesquisador é solitário, mais ainda em assuntos tabus como estes. “Veja o caso do suicídio. Só de postar a palavra, o Facebook envia uma mensagem para saber mais sobre quem o fez, se não está se sentindo bem, por que abordou o assunto”, diz. Só que, como diz o professor, falar da morte é falar da vida, e estudar a morte é estudar o futuro.
Na UEL, além dos alunos da disciplina, o professor tem seus orientandos, que abordam a Literatura também em outros suportes, como a produção digital e sua estética. Isso inclui a poesia virtual háptica (tátil). O professor desenvolve ainda um projeto de pesquisa sobre elegias, cadastrado no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).