“Sob a proteção de Deus”

“Sob a proteção de Deus”

Pesquisadores imergem no fenômeno religioso das primeiras décadas de Londrina e revelam que esta dimensão social fazia parte do projeto de colonização.

O professor Wander de Lara Proença (Departamento de História), coordenador do projeto de pesquisa “O fenômeno religioso em Londrina: História e Historiografia (1930-1950)”, disparou logo de início: “Londrina é uma das oito cidades mais evangélicas do Brasil”.

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Edição número 1428
de março de 2024
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Para entender como se chegou até aqui, é preciso voltar quase quatro anos, quando uma demanda de sala de aula e a presença de lacunas na produção historiográfica da área incitou a criação do projeto, que objetiva fazer um grande mapeamento do fenômeno no referido período de tempo. “Só existem trabalhos mais pontuais”, observa Wander.

Esta, porém, é apenas a primeira fase do projeto, que vai até abril de 2025. Numa segunda fase, os pesquisadores se debruçarão sobre as décadas posteriores, até o ano 2000. E numa terceira fase, o século XXI.

As primeiras décadas representam um desafio à medida que o acesso a fontes documentais é mais difícil, porque não são tantas e, às vezes, estão em posse de famílias, que apenas guardam o material sem atribuir tanta importância histórica para a cidade.

A pesquisa, porém, retrocede até antes da chegada dos primeiros colonos, afinal, o norte do Paraná já era habitado antes deles. Os caingangues, por exemplo, não registravam nada por escrito, mas já possuíam uma rica cultura e memória, com seus ritos, costumes, festas e relação com a morte. Era uma religiosidade expressa em seu cotidiano, explica Wander. “O primeiro desafio é dar visibilidade a esta cultura”, acrescenta. Nisso, ele conta com a valiosa ajuda de indígenas que estudam na UEL. O projeto tem feito entrevistas e coletado depoimentos em áudio. Seguramente, a religiosidade indígena fará parte do livro que o projeto pretende lançar até o final da primeira fase.

Em parte, os indígenas têm sido esquecidos por causa do imaginário construído em torno de Londrina – uma espécie de Terra Prometida, Nova Canaã, um El Dorado. “Uma terra promissora para gente ordeira e religiosa, cristã”, define o professor Wander. Londrina era idealizada como uma “Cidade Jardim”, planejada para menos de 30 mil habitantes, todos muito devotos.

Professor Wander: “Londrina é um caso sui generis: ela nasceu protestante, com tolerância, parcerias, ações sociais e olhar para o futuro”.

O desenvolvimento da cidade fez o aeroporto de Londrina, em certa época, ser o terceiro mais movimentado do país, atrás apenas do Rio de Janeiro e São Paulo. Entretanto, não apenas grandes investidores ou famílias abastadas foram atraídas para a cidade. Começaram a chegar pessoas chamadas na época de “indevidas”, que se estabeleceram em vários pontos da cidade incipiente, como por exemplo abaixo da linha do trem, uma linha divisória material e moral, para o imaginário de então.

Presbiterianos, os primeiros

Em 1932, quando Londrina tinha apenas 12 casas, chegava a primeira família protestante, vindos de São Paulo. Primeiro veio o marido/pai, e depois a esposa e os três filhos. Eram da Igreja Presbiteriana Independente, e onde ficava sua residência hoje está o templo. A família abriu sua casa para todos praticarem sua religiosidade. E logo Londrina recebia as visitas do Reverendo Jonas Dias Martins, um pastor também de São Paulo. Na década de 40 ele se mudou de vez para a cidade.

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Templo da Igreja Presbiteriana Independente fica no local onde se estabeleceu a primeira família desta denominação, no centro de Londrina.

Os primeiros metodistas e batistas chegaram em 1934. Seus templos ficam, respectivamente, em frente ao Bosque e na Avenida Paraná, no prolongamento do Calçadão. De fato, todas as igrejas históricas ficam no Centro Histórico de Londrina, com exceção da Anglicana, que se estabeleceu numa chácara da época, mas a poucos minutos do centro, de carro, hoje em dia. A Igreja Católica chegou em 1934, com a vinda de um bispo de Jacarezinho, no Norte Pioneiro (155km de Londrina). Em 1935, chegaram as irmãs do Movimento de Schöenstatt, criado duas décadas antes na Alemanha. Finalmente, em 1941, chegou a primeira igreja pentecostal, a Assembleia de Deus – a maior pentecostal do Brasil.

Uma característica interessante destacada pelo professor Wander é o trabalho social realizado pelas primeiras igrejas no período, como atendimento aos doentes e acolhimento das famílias que chegavam a Londrina. Tudo era feito em conjunto, naturalmente. Quando os pastores vieram, porém, os fiéis das diferentes denominações se separaram. Esta atitude solidária, contudo, era um aspecto do imaginário cristão das famílias incentivado pela Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), responsável pelo projeto de ocupação e colonização da região. A empresa inglesa tinha anglicanos e batistas.

Enfim, como ressalta Wander, “Londrina é um caso sui generis: ela nasceu protestante, com tolerância, parcerias, ações sociais e olhar para o futuro”.

Fé, educação e saúde

Outra característica das igrejas que vieram para Londrina no início de sua história foi o investimento na educação e saúde, no contexto da prática cristã. Na década de 30 do século passado, a grande maioria dos brasileiros era analfabeta. O pastor presbiteriano Zaqueu de Melo chegou em Londrina em 1945 e no mesmo ano fundou o Instituto Evangélico Secundário, hoje Colégio Londrinense. E em 1971, deu os passos para a criação do futuro Centro de Estudos Superiores de Londrina (Cesulon), hoje Unifil (Universidade Filadélfia).

Segundo o professor Wander, Zaqueu de Melo também foi político, eleito deputado, e soube articular a sociedade e a classe em favor da educação na cidade. “O Protestantismo em Londrina abriu escolas”, sintetiza. O pesquisador relata que o pastor trouxe de Minas Gerais, sua terra de origem, um modelo já consolidado de educação. E mais: ele colaborou também na criação da primeira faculdade que mais tarde ajudaria a compor a UEL.

O Campus da UEL tem uma réplica da primeira Igreja Matriz de Londrina, inaugurada em 1934.

A Igreja Católica também contribuiu: as freiras de Schöenstatt fundaram o Colégio Mãe de Deus em 1936, também em frente ao Bosque. Elas também cuidam, até hoje, da Santa Casa de Londrina, o primeiro hospital da cidade, na área central, e inaugurado em 1941. E não nos esqueçamos de Zaqueu de Melo, que ajudou na implantação do Hospital Evangélico de Londrina.

Tensões

Mas não era a Nova Canaã. Ocorreram tensões. O professor conta um episódio, de 1941, em que houve uma queima de Bíblias em praça pública, em Cambé.

Protestantes tinham o hábito de distribuir Bíblias gratuitamente à população, e um grupo de freis capuchinos não gostou nada disso. Na época, antes do Concílio Vaticano II (1962-1965), os católicos não tinham o hábito de lê-las. Estava em vigor a missa tridentina, em latim. Em resposta, os protestantes passaram a usar os alto-falantes das praças, muito comuns para avisos gerais, para ler a Bíblia.

Também na década de 40, as manifestações de religiões de matriz africana – vindas de Minas Gerais e São Paulo – tinham que ser muito discretas, e os cultos ocorriam em chácaras, onde hoje ficam o Jardim Tokyo (zona oeste) e Vila Fraternidade (zona leste). Ainda assim, explica Wander, há “vestígios” (em fontes documentais) do incômodo causado por elas na população cristã.

Primeiro, algo mais indireto, como recomendações de médicos para que os pacientes não recorram aos remédios de ervas, aos benzimentos e outras práticas ligadas àquelas religiões. Depois, vieram recomendações mais expressas de evitar qualquer contato. Logo, o delegado local começou a desestimular tais práticas religiosas. Ao mesmo tempo, o jornal Paraná Norte continuava a defender o ideário da “Cidade Jardim”. Finalmente, as tensões chegaram à política e poder público: vários projetos de lei foram propostos na Câmara Municipal, que aprovou um Código de Posturas. Entre outras coisas, legislava sobre comportamentos noturnos, presença de “mulheres da vida” nas ruas e garantia às famílias que poderiam andar pela cidade, ir à igreja etc., sem topar com “pessoas indevidas”. “Foi feita uma demarcação simbólica, uma territorialização, assinalando locais lícitos e ilícitos, ou perigosos”, descreve Wander.

Toda territorialização cria margens, e não foi diferente em Londrina. Só que mesmo lá existe religiosidade. O pesquisador lembra de uma matéria na Folha de Londrina, que noticiou um incêndio em uma casa “suspeita” na Vila Matos (região onde hoje fica o Terminal Rodoviário). O fogo começou, porém, com uma vela acesa para uma santa.

Percursos

O projeto conta atualmente com três professores do Departamento de História (incluindo o coordenador). Os outros são José Rodolfo Vieira (especialista em Islamismo) e Richard Gonçalves André, que divide a titularidade do projeto. Há ainda sete estudantes, entre graduandos (inclusive de Iniciação Científica, com bolsa da Fundação Araucária), pós-graduandos de História da Religião e das Religiosidades da UEL, e dois mestrandos da Faculdade Teológica Sul-Americana de Londrina, protestante não-denominacional.

Os pesquisadores têm avançado no estudo das fontes, analisadas em duplas, e que são basicamente de quatro categorias: produções acadêmicas de História e Ciências Sociais; produções memorialistas (livros e material jornalístico, entre outros); produções das igrejas; e não escritas. Tudo isto deve compor um amplo banco de dados que será disponibilizado a qualquer pesquisador, através do Núcleo de Pesquisa e Documentação História da UEL (NDPH).

Paralelamente, o projeto tem disseminado resultados em eventos científicos, em Londrina e outras regiões, com comunicações e publicações nos Anais, o que deve continuar sendo feito até a publicação dos três volumes do livro, produto final das pesquisas.

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