Canibalismo é registrado em um terço dos filos do reino animal, diz pesquisa inédita

Canibalismo é registrado em um terço dos filos do reino animal, diz pesquisa inédita

Pesquisa de doutorado é a última análise ampla sobre o tema desde 1981 e avança em novas definições e subdivisões da prática.

Comportamento atípico entre os humanos por questões culturais, o canibalismo é registrado com frequência entre outros seres vivos, podendo estar presente desde o início da evolução do reino animal e até ter colaborado para garantir a sobrevivência de diversas espécies. É o que analisa uma pesquisa inédita realizada por um doutorando do Departamento de Biologia Animal e Vegetal (BAV), do Centro de Ciências Biológicas (CCB) da UEL, e que aponta a ocorrência do comportamento em espécies que pertencem a pelo menos dez dentre os mais de 30 filos (categoria taxonômica que agrupa classes relacionadas) cientificamente conhecidos do reino animal.

A tese “Análise Filogenética e da História Evolutiva do Canibalismo no Reino Animal”, do professor universitário Alexandre da Silva, realiza uma revisão sistemática da literatura científica a respeito do canibalismo entre os animais, trazendo uma análise detalhada sobre as diversas formas com que este comportamento se apresenta. De acordo com ele, enquanto as análises já produzidas são mais frequentes entre os peixes, pouco se sabe sobre este comportamento entre as aves, por exemplo, fazendo com que o tema seja alvo de muito interesse na comunidade científica. 

Outro destaque é para a contribuição da pesquisa. Isso porque a última análise ampla sobre o tema foi realizada há quatro décadas, em 1981, e sua contribuição avança na elaboração de novas definições e subdivisões do comportamento, colaborando, também, com a padronização das nomenclaturas utilizadas.

A busca

Para realizar a análise, Alexandre buscou pelo termo em duas bases de dados – Web of Science e ScienceDirect – e encontrou 6.071 resultados. Com a ajuda do software de gerenciamento de referências Mendeley, excluiu artigos duplicados e passou a desconsiderar também as publicações das áreas da Administração e Astronomia que traziam a palavra-chave “canibalismo” para se referirem ao processo quando envolvendo empresas e galáxias, respectivamente. Também foram excluídos trabalhos puramente teóricos, como modelos matemáticos sobre o tema. Por fim, para delimitar ainda mais em sua metodologia, excluiu referências ao comportamento de animais de companhia, como cães, gatos, galinhas, além de bovinos e suínos, restando um total de 4.068 publicações científicas.    

Egresso do curso de graduação em Ciências Biológicas da UEL, Alexandre da Silva confessa que o interesse surgiu com as inúmeras produções cinematográficas que abordam o canibalismo entre humanos, como a clássica adaptação para o cinema de “O Silêncio dos Inocentes” (Jonathan Demme, 1991), ficção que inclusive rendeu o Oscar de melhor ator a Anthony Hopkins, que interpretou o memorável psiquiatra canibal Dr. Hannibal Lecter. No entanto, Alexandre amadureceu a ideia de pesquisar o canibalismo no reino animal durante seu mestrado na UEL. Contando com uma bolsa de mestrado da Capes, começou a pensar em ideias para seu projeto de doutorado, percebendo, por exemplo, que o comportamento canibal é relativamente comum em peixes.

Divulgação.

“Na Truta do Ártico (Salvelinus alpinus), foi observado que os peixes adultos, incluindo os parentais, consomem ovos após a desova múltipla”, explica Alexandre da Silva.

O escopo da revisão bibliográfica envolve a produção científica acerca do comportamento de animais invertebrados, como anelídeos, moluscos e artrópodes, e todas as classes de vertebrados, explica o doutorando, que atua como docente das disciplinas básicas dos cursos da área da Saúde, tais como Fisiologia Humana, Microbiologia e Biologia Celular, no Centro Universitário de Telêmaco Borba (Unifateb).  

Ao analisar os mais de quatro mil artigos, realizou a catalogação dos níveis taxonômicos básicos, como filo, classe, ordem e espécie, estruturando sua pesquisa e os diversos tipos de canibalismo. 

Doutorando do BAV Alexandre da Silva atualiza ampla pesquisa sobre canibalismo, na sua tese doutoral (Arquivo pessoal).

Novas categorias

Um aspecto curioso, conta Alexandre, é que apenas quatro tipos de canibalismos eram considerados pela ciência até então. “No entanto, passamos a considerar 17 categorias e algumas subcategorias”, diz. Dentre as categorias propostas por ele, aparece uma que se refere ao consumo dos restos mortais pela mesma espécie do indivíduo morto, porém sem ter havido confronto, a chamada necrofagia, registrada em humanos primitivos na trajetória evolutiva do Homo sapiens, bem como em outros seres do Reino Animal. Em uma livre associação com o cinema, o comportamento é retratado na audaciosa produção “Vivos” (Frank Marshall, 1993), que aborda o famoso episódio do acidente aéreo de um time de rugby uruguaio, em 1973. Isolada e exposta à fome e ao frio, parte dos 16 sobreviventes passa a consumir a carne de outras vítimas da tragédia, cujos corpos permaneceram congelados sob a grossa camada de neve da Cordilheira dos Andes. 

Tubarão-branco é uma das espécies que pratica sibilicídio, que é o canibalismo que ocorre no interior do útero (Reprodução).

Um tipo mais frequente é a predação não-parental, modalidade que consiste no consumo de um indivíduo por outro da mesma espécie, porém não relacionado geneticamente. Por outro lado, o canibalismo entre irmãos é chamado de siblicídio e já pode ocorrer no interior do útero, conforme registrado com o Tubarão-branco.

Já o canibalismo filial, conta o pesquisador, ocorre quando os progenitores consomem seus próprios descendentes, causando um paradoxo para análises do ponto de vista evolutivo. “Geralmente, do ponto de vista evolutivo, espera-se que você não vá se alimentar da sua própria descendência, no entanto isso ocorre. Um exemplo é o inseto da ordem Dermaptera – Forficula auricularia -, conhecido como “Tesourinha”, em que as fêmeas são mães canibais”, conta. Ele ainda lembra que este comportamento também foi registrado em espécies de cupins, no entanto, apenas quando submetidos à restrição alimentar. “Em espécies de peixes também é mais comum comer os próprios ovos. Em uma espécie de cupim, atualmente na mesma ordem das baratas, isso também ocorre. Quando submetidos a uma restrição alimentar, começaram a se alimentar da própria prole”, ensina.

Dentre as espécies do reino animal conhecidas por cometerem o canibalismo sexual, destaca-se outro personagem alçado à fama pela indústria do cinema e das histórias em quadrinhos, pelo menos em razão do seu nome popular: a viúva-negra. Aracnídeos do gênero Latrodectus, as fêmeas podem pesar até 30 vezes mais do que os machos, sendo a diferença de tamanho e força facilitadores do comportamento canibal. “Esse é o padrão geralmente quando o macho é bem menor do que a fêmea”, destaca. Há, também, espécies que canibalizam seus parceiros durante a cópula, caso do Louva-a-deus, e anteriormente à cópula, como a Aranha de Jardim (Araneus diadematus).

Viúva-negra é uma das principais representantes do canibalismo sexual. Aranha se alimenta do macho, que é até 30 vezes menor (Reprodução).

Sobre as categorias encontradas na revisão, o pesquisador ainda destaca duas cuja ocorrência tem estreita relação com o comportamento das fêmeas. Novamente tendo um aracnídeo como exemplo, os pseudoescorpiões são representantes dos artrópodes cuja fêmea é capaz de se sacrificar para deixar seu próprio corpo como alimento para seus descendentes, um comportamento batizado de matrifagia. Já na contramão deste comportamento, o canibalismo do natimorto é registrado nas fêmeas da espécie Epicrates cenchria, serpente que ingere a prole não viável e garante uma recuperação pós-parto ainda mais rápida, explica o doutorando. 

Coletas do estudante Alexandre em lagos. Parte importante das espécies em que se registram casos de canibalismo é aquática (Arquivo pessoal).

Origem 

Durante a revisão dos mais de quatro mil artigos científicos, o comportamento canibal ainda aparece atribuído de forma esporádica a leopardos, ursos, hipopótamos e até chimpanzés, a espécie animal viva mais próxima da espécie humana e que tem 98% de semelhança genética com os seres humanos. Dessa forma, o pesquisador acredita que outras categorias do comportamento poderão ser encontradas.

No entanto, já é possível destacar que a origem do canibalismo é tão antiga quanto a origem do próprio reino animal, processo marcado pelo surgimento dos seres formados por tecidos corporais complexos e que são também chamados de metazoários, explica o orientador da pesquisa, o docente da área de Zoologia do Departamento de Biologia Animal e Vegetal da UEL Fernando Camargo Jerep.

A constatação surgiu a partir da análise do comportamento alimentar dos seres do filo Ctenophora, uma das primeiras linhagens conhecidas do reino animal e cujo número total de espécies identificadas passa de uma centena. “Em 2020, foi publicado um artigo na revista Nature avaliando o canibalismo em uma das espécies de Ctenophora chamada de Mnemiopsis leidyi, que ocorrem no mar Báltico, no Hemisfério Norte. Ela é conhecida porque tem alto potencial invasor e capacidade de adaptação a condições inóspitas”, explica Jerep.

Pertencente do grupo basal na filogenia dos animais, os ctenophora, o Mnemiopsis leidyi também já possuía comportamento canibal. (Imagem: reprodução).

Conhecidos como seres gelatinosos, presentes nas áreas oceânicas, os ctenóforos são caçadores e predadores de pequenos animais marinhos, incluindo águas-vivas. No entanto, podem se tornar canibais quando submetidos a condições inóspitas, revela o artigo publicado na Nature pelos cientistas Jamileh Javidopour, Juan Carlos Molinero, Eduardo Ramirez Romero, Patrick Roberts e Thomas Larsen.

“Ou seja, para aumentar a capacidade de sobrevivência dos adultos, gametas são liberados na água. Lá, ocorre a fecundação, eles viram pequenos zigotos e larvas da própria espécie, das quais os adultos podem acabar se alimentando. Com isso, a espécie tem uma resiliência maior naquele ambiente e consegue manter um estoque nutritivo até as condições melhorarem”, explica o orientador da pesquisa.

Com essa linha de estudos, os pesquisadores pretendem unir as nomenclaturas encontradas e cruzar informações com a própria árvore evolutiva das espécies para explicar, por exemplo, se o comportamento canibal é herdado ou aprendido ao longo do desenvolvimento das espécies.

Leia também