História e língua: pesquisa analisa variantes linguísticas na Região Sul

História e língua: pesquisa analisa variantes linguísticas na Região Sul

A doutoranda Kauna Scabori estudou as variações da pronúncia da letra "r" no Sul do Brasil. Trabalho será apresentado no Paraná Faz Ciência.

O português é uma das línguas mais faladas no mundo: mais de 250 milhões de pessoas se comunicam através do idioma. “Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you”, como entoa Carmen Miranda em Disseram que eu voltei americanizada, reflete o carinho e intensidade da língua, principalmente a falada pelos brasileiros.

Atentando ao Brasil, o português transforma-se de fronteira em fronteira. O “eu te amo” na região Nordeste pode soar completamente diferente ao falado no Sul do país. As particularidades dos sons emitidos na fala da região Sul, em especial dos róticos (variantes representadas pela letra “r” ou arquifonema), são objetos de estudo na pesquisa da doutoranda em Estudos da Linguagem (CLCH) Kauana Scabori.

Kauana é mestra em Estudos da Linguagem e professora na rede estadual do Governo do Paraná. A pesquisadora cunhou o termo “Geossociofonética”, fusionando línguas teóricas a fim de propor um estudo mais aprofundado desses temas. “Ao analisar os meus dados, eu identifiquei que eles propiciavam um novo termo para trazer os elementos da fonética acústica a partir de uma análise Sociolinguística Quantitativa”, explica.

A pesquisa foi feita a partir de dados parciais do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), responsável por entrevistar nativos do português brasileiro por todo o país. Foram mais de 6 mil dados contemplados de 29 localidades da Região Sul. Através de um extenso trabalho estatístico, Scabori pode solucionar (e descobrir mais) questões sobre como a variação rótica do Sul é marcada por fatores extralinguísticos, desde ordem social até histórica.

O projeto, inclusive, participa da Paraná Faz Ciência 2023. Parte do Eixo 2, a Mostra Interativa de Ciência, Tecnologia e Inovação, o ALiB estará na Sala 101 do Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH), onde apresentam estudos que tratam do português hoje, alguns que se voltam para o passado e novas utilizações dos dados em obras didáticas e paradidáticas. 

Na tese, Scabori analisou dados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Números referem-se aos “pontos de inquérito”, uma metodologia de distribuição geográfica formulada pelos membros do ALiB na sua criação (Fotos: Arquivo pessoal).

O rato roeu a roupa do rei de Roma

Scabori conta que uma das razões que a levaram a iniciar a pesquisa foi seu avô. “Eu também tenho um avô que é aquele avô clássico italiano, que faz macarronada aos domingos e fala o Tepe Alveolar”. Na fonética, o Tepe Alveolar é um fone caracterizado por uma obstrução do movimento da língua em direção aos alvéolos. Pode-se pensar na maneira em que Carmen Miranda pronuncia “burro” na canção, ou como descendentes de italianos falam “O rato roeu a roupa do rei de Roma” como se “tremessem” a letra “r”. 

“Temos várias possibilidades de avós espalhados pela Região Sul, dado o contexto de imigração que ocorreu no nosso cenário, mas nesse caso o fato do meu avô ter uma variante diferente dos demais motivou-me a investigar o que acontece, principalmente na Região Sul”, explica a pesquisadora.

Segundo a pesquisadora, o processo histórico de formação do Sul é fundamental para se entender a variação dos róticos. Desde o curso de imigração europeia, o embranquecimento da população entre os séculos XIX e XX, até o processo do caminho dos tropeiros desde o Rio Grande do Sul até São Paulo pelo Norte Pioneiro do Paraná. “Eu quero mostrar com a pesquisa que o processo migratório e imigratório que aconteceu no nosso processo histórico da região Sul, que chamo de processo sócio-histórico por ter um grande viés econômico por trás de tudo isso, interfere na predileção de uma ou outra variante rótica”.

“A gente vê o que ficou dessa tradição, dessa cultura. Identificar variantes linguísticas, ter esse apreço pela língua, revela uma cultura que não morreu. Que há uma tradição histórica que se passa na região”, ressalta a professora.

A faixa etária dos falantes também pode influenciar na pronúncia dos róticos. A doutoranda explica que, conforme os informantes do Alib da primeira faixa etária (entre 18 e 35 anos), é possível ver e ouvir a diferença em comparação aos mais idosos. “Pelo que os dados revelaram, nós temos uma manutenção dessa tradição cultural histórica do falar italiano, que vem com a variante, por exemplo, o Tepe Alveolar, considerado propriamente típico da cultura italiana”.

As novas gerações ainda carregam no falar os resquícios de uma tradição histórica. “Esse processo de ver uma variante linguística (morrer) é triste, principalmente para o pesquisador. Meu avô falava o Tepe Alveolar, hoje eu não falo”, comenta Scabori. Mesmo com as transformações da língua com o passar dos anos, a cultura permanece viva na fala. “O que importa pra nós é que (essas variantes) ainda existem. Não podemos dizer que esse processo foi finalizado na Região Sul do Brasil. E há ainda uma manutenção dessas variantes, feita pela geração mais jovem”.

Pronunciando cultura

Analisando o trato respiratório, a professora ilustra o funcionamento. “Quando o ar sai de forma agressiva, eu posso produzir consoantes e vogais. Como eu vou produzir depende da configuração do sistema articulatório que é composto pelos dentes, palato duro e palato mole, língua, véu palatino, tudo isso compõe o sistema”. No processo chamado posteriorização, a produção dos róticos acontece na região posterior da boca. “A pergunta que é feita é o que leva o falante da Região Sul escolher como ele vai produzir a variante rótica. Será que ele pensa nisso?”, indaga.

Na pesquisa, a posteriorização foi estudada a fim de mostrar a influência das mudanças sociais do Sul. “A partir disso foi possível identificar que o contexto de produção de fala, o monitoramento exercido pelo falante, tende, sim, a eleger uma ou outra variante rótica”, revela.

O contexto em que os indivíduos se veem inseridos leva às mudanças na pronúncia. “No contexto em que eu converso distraída, posso falar ‘rrato’ (com o “r” forte), mas em outro contexto de mais atenção na fala, posso falar um ‘rato’ (“tremendo” o “r”), pra ficar mais bonito, forçar um pouco a pronúncia. Das duas formas, eu ainda assim produzi ‘rato’”, exemplifica a pesquisadora. 

Até mesmo o sexo biológico pode influenciar na fala, considerando que a pesquisa identificou que homens da segunda faixa etária (entre 50 e 65 anos) tendem a produzir mais Fricativas Velares (sons produzidos ao se contrair o fluxo de ar através por um canal no ponto de articulação, causando uma turbulência) do que mulheres. São inúmeras variações que não podem ser explicadas em só uma tese, mas são continuadas em um processo constante de pesquisa. “Tese de doutorado é uma eterna pesquisa, sempre vai ficar para alguém fazer uma avaliação mais profícua”. 

Reconhecimento internacional

“Você tem uma função emotiva para o signo linguístico além de pensar numa função abstrata dele”, comenta Scabori. Para ela, o signo nada mais do que a palavra em seu contexto de uso, que é arbitrário. Estudar e divulgar as variantes de róticos tão característicos de uma região do Brasil é fundamental para contribuir com a sociedade e a sensibilidade de sua cultura. 

Scabori buscou fazer cursos fora do Paraná para encontrar a melhor forma de apresentação dos dados na tese.

A pesquisa é um trabalho solitário, confessa a doutoranda, mas divulgar os resultados, principalmente no âmbito internacional, é algo “emocionante”. “Pensar que o Brasil tem pesquisa de qualidade, pensar na responsabilidade com a Universidade, com as instituições de pesquisa e com a própria população para mostrar esses dados, levar algo que traz respostas é algo incrível, pensando no meu papel de pesquisadora. É uma realização”.  

Expor o interesse em preservar as variedades linguísticas e a importância da ação de um atlas de abrangência nacional como o ALiB mostrar como a pesquisa no Brasil e na Região Sul merecem atenção. “Nós temos o nosso reconhecimento, e principalmente mostrar o saber de como foi o processo de colonização linguística. É importante saber como a Região Sul foi um berço para que aflorassem novas variantes linguísticas”, salienta Scabori.

*Estagiária de Jornalismo na COM/UEL.

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