Pesquisa analisa discursos e narrativas do Japão pós-guerra através de mangás
Pesquisa analisa discursos e narrativas do Japão pós-guerra através de mangás
O estudante Lucas Ciamarinoni Munhoz analisou o mangá “Gen Pés Descalços”, criado de forma semi-biográfica por um sobrevivente da bomba lançada em HiroshimaAnalisar os discursos e narrativas presentes na memória do Japão após 2ª Guerra Mundial é o objetivo da Dissertação de Mestrado em História Social de Lucas Ciamaricone Munhoz, do Departamento de História, do Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH). A proposta, elaborada pelo estudante em conjunto com o orientador Richard Gonçalves André, professor do Departamento e pós-doutor em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela Universidade de São Paulo (USP), é fazer uma análise da série de mangá “Gen Pés Descalços”, criada de forma autobiográfica por Keiji Nakazawa, um quadrinista sobrevivente da bomba atômica na cidade de Hiroshima.
Munhoz conta que a ideia para a sua dissertação “Gen, o Trigo Verde de Hiroshima: A Construção da Memória no Pós-Guerra entre Representações e Narrativas” teve origens na graduação, quando ele optou por fazer seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre a historicidade da construção das bombas atômicas. Foi então que, no terceiro ano da graduação em História, durante suas pesquisas sobre como trabalhar com a temática, ele conheceu o professor Richard Gonçalves André, coordenador do então projeto de extensão Laboratório de Pesquisa sobre Culturas Orientais. Nele, o professor explicou que seu objeto de estudo poderia ser o mangá.
O professor André explica que, no início, o grupo trabalhava exclusivamente com religiões e religiosidades orientais. Entretanto, ao ver que todos os alunos tinham em comum um grande interesse por mangá, eles expandiram os objetos de estudo para abarcar a cultura oriental de forma mais ampla. “Antes eu dizia que era 90% dos meus orientandos. Mas talvez seja 100% das pessoas que chegam para pesquisar o Oriente e falam ‘Vim aqui a partir de mangá ou de anime’. Isso é muito comum, eu mesmo vim disso. Nasci nos anos 80, mas cresci nos anos 90, assistindo e lendo esses materiais. Esse grupo de pesquisa sobre culturas orientais passou a colher essas outras pesquisas também”, explica o docente.
Entretanto, Lucas Munhoz explica que ao procurar uma obra para servir de objeto de estudo, buscou se manter afastado de mangás que ele já conhecesse, para evitar “contaminar” a pesquisa com suas emoções e memórias afetivas ao trazer uma visão romantizada do assunto. Foi então que, ao pesquisar sobre quais mangás tratavam da questão nuclear, o estudante se deparou com a escolha entre duas obras. “Eu cheguei em dois: O Gen Pés Descalços; e o Akira – que não trabalha diretamente com a questão do bombardeio, mas está nesse debate e que é bastante famoso também. Optei pelo Gen por conta da sua própria natureza, por trabalhar com essas questões mais diretamente e pelo fato de o autor, Keiji Nakazawa, ser um sobrevivente da bomba atômica de Hiroshima”, afirma.

Ligação entre obra e autor
Publicado originalmente no Japão entre 1973 e 1985, Gen Pés Descalços saiu em algumas editoras, mas primariamente a Shonen Jump, uma das maiores do país. O mangá – que compreende 10 volumes que somam mais de 2 mil páginas – retrata em seu início os três meses finais da 2ª Guerra Mundial, em 1945.
Munhoz explica que a trama acompanha um menino de cinco anos que sobrevive ao bombardeio de Hiroshima e lida com as questões decorrentes ao ataque; até sua vida adulta, onde ele busca se tornar um quadrinista em Tóquio. “De certa forma essa é um pouco da história do Nakazawa. Então ele tenta trazer as memórias de infância dele, do que viveu, das memórias de pessoas que relataram para ele ou de pesquisas que se empenhou em fazer para tentar trazer uma representação mais direta”, diz.

Ainda de acordo com o mestrando, além de abordar as milhares de mortes decorrentes do ataque americano, o mangá se aprofunda nos impactos causados na vida cotidiana no pós-guerra. O mercado clandestino, a prostituição e os demais aspectos da vida dos Hibakushas (sobreviventes da bomba) acompanham os personagens ao longo da história. “No Gen, o tema principal obviamente é o bombardeio e a sobrevivência, mas o autor trabalha com uma vasta gama de temáticas presentes ali naquele momento de reconstrução do Japão, de Hiroshima e Nagasaki”, informa.
Narrativas, negacionismo e os Hibakushas
Outros aspectos investigados na dissertação são as narrativas e o negacionismo do Japão sobre as relações com os Estados Unidos, com guerras passadas e até como foram tratadas as vítimas das bombas atômicas nos anos seguintes aos ataques. Ao verificar o contexto histórico do período, Munhoz apurou que até o momento da rendição do Japão, ele era um país imperialista, colonizador e inimigo dos Estados Unidos. Porém, tudo se inverte com o fim da guerra. “O país passa a ter uma relação de amizade e passa a ser comandado pelas forças americanas. Ele perde esse caráter de país imperialista, colonizador, e adota uma narrativa um tanto quanto vitimista para expiar os crimes de guerra praticados, principalmente os ligados à imagem do imperador”, afirma o mestrando.

Ambos explicam que nesse período pós-guerra surgiu uma narrativa negacionista desinteressada em demonstrar os reais efeitos das bombas devido à recente alinhamento de ideias entre Japão e Estados Unidos. Como resultado dessa omissão, vários boatos se espalharam entre a população que não foi diretamente atingida pelas bombas atômicas, como alguns habitantes de Tóquio que acreditavam que os sobreviventes transmitiam radiação pelo toque.
Richard André argumenta que essa narrativa – ainda muito presente na mentalidade atual – que o Japão acolheu muito bem as vítimas dos ataques não necessariamente é verdade, considerando o imaginário de que as vítimas de Hiroshima e Nagasaki foram tocados por algo horrível. “Essa contaminação, que é física, certamente, mas para eles era uma contaminação quase espiritual, a ponto de ser considerado quase grotesco. Isso é mais ou menos comum na história japonesa, infelizmente. Órfãos de guerra passam a sofrer discriminação. Soldados repatriados viram mendigos. Diz-se ‘Ah, são heróis de guerra’, mas para todos os fins, são mendigos a partir de agora”, lamenta.
Ao analisar a biografia de Nakazawa, Munhoz descobriu relatos de perseguição e preconceito que sofreu ao se mudar para Tóquio em sua empreitada de se tornar um quadrinista. “Ele cita alguns episódios, também no mangá, porém mais na biografia dele em que fala que chegou em Tóquio e as pessoas não sabiam praticamente nada sobre os bombardeios atômicos. E quando descobriram que ele era um um sobrevivente ele foi segregado, sofreu preconceito, perseguição. Teve
vários episódios de pessoas indo na casa dele para atacar a família dele”, exemplifica.
Da mesma forma que surgiu um negacionismo quanto ao tratamento dos Hibakushas, também foi construído um negacionismo com o passado de guerra do Japão com outros povos, como a empreitada colonial do Japão em nações como China, Coréia e Filipinas. Um passado marcado pelo assassinato de dezenas de milhões de pessoas, a cooptação de mulheres a se tornarem prostitutas de militares, além de criação de armas químicas pela unidade 731 durante a 2ª Guerra Mundial. “Então é essa narrativa. ‘Aconteceu a guerra, aconteceu a bomba atômica mas esse passado nós precisamos esquecer’, porque como você constrói a imagem de uma vítima, mesmo essa vítima sendo um agressor”, elabora Munhoz.
Metodologia
Para fazer a análise de todos esses aspectos do mangá e do período histórico, Munhoz e André trabalharam com os referenciais teóricos e a metodologia. Na parte teórica, o mestrando utilizou os conceitos de memória de Michael Pollack, um pesquisador alemão que trabalha com o conceito de memória a partir do Holocausto. Ele também trabalha com base no que a historiadora australiana Tessa Morris-Suzuki pensa na memória a partir das duas guerras Sino-Japonesas e também dos bombardeios atômicos. Por fim, ele utiliza o referencial teórico do historiador francês Roger Chartier, sobre os pontos envolvendo as representações que surgem no pós-guerra.
Já com relação ao método, o estudante de Mestrado optou por trabalhar com Umberto Eco, Takashi Murakami e Will Eisner, porém este último serve de apoio para melhorar o entendimento de como um quadrinho é feito, seus elementos e aspectos. Já Umberto Eco traz um método semiótico de análise de mangá enquanto Murakami pensa em algumas particularidades presentes nos mangás e em quadrinhos ocidentais.

Por ser uma obra autobiográfica de Keiji Nakazawa e trabalhar de forma histórica do período, Munhoz diz que há uma discussão se Gen Pés Descalços inaugura um novo gênero de mangá, como o mangá documentário ou o Genbaku, os mangás com temáticas de bombas atômicas. Essa discussão também é um dos objetos de investigação da dissertação de Mestrado ainda em andamento. “O que eu tenho propriedade para falar no momento é que as fontes apontam que o Gen foi um dos primeiros mangás com essa temática mais adulta, que trabalha um tema sensível com um caráter histórico, político”, afirma Munhoz.
Até o momento, o mestrando explica que considera a possibilidade de Gen inaugurar o Gekiga, que seria um gênero dramático, voltado para adultos e com representações mais fortes e violentas, que não tem como alvo principal o público adolescente. “Pelo o que eu pude pesquisar até o momento o Gen realmente influenciou nessa visão de que lá na década de 70, 80 que o mangá poderia trabalhar com uma temática mais séria e não ser algo puramente voltado para o entretenimento”, conclui.

*Estagiário de Jornalismo na COM.