Isso (não) é apenas mais um podcast de Filosofia

Isso (não) é apenas mais um podcast de Filosofia

Em linguagem acessível e voltado a quem está despertando o interesse pela mãe das ciências, a iniciativa ajuda a divulgar o conhecimento que perdeu seu espaço na Educação Básica

Há pouco mais de um ano, quase 40 estudantes de graduação da Universidade Estadual de Londrina estão envolvidos em um projeto de extensão sediado no Departamento de Filosofia voltado à produção de um podcast. Até agora, nada de novo em 2025, cinco anos após o evento mundial que fez explodir o consumo de programas de áudio, levando pesquisadores e profissionais de várias áreas a um poderoso ambiente de transmissão da palavra falada, a podosfera. Entretanto, engana-se quem pensa que os mais de 60 episódios já lançados foram produzidos apenas por alunos do curso de Filosofia da UEL. Na verdade, são fruto da reflexão filosófica de graduandos em Direito, Jornalismo, História, Letras Francês e até Nutrição, o que confere múltiplas vozes à condução do “Escuta Pensante”.

Com a promessa – e a premissa – de abordar o saber abstrato “ao pé do ouvido”, diz o subtítulo, a jornada teve início em agosto de 2024 com um episódio sobre o conceito de angústia de Soren Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês que viveu de 1813 a 1855. Em seguida, vieram a Ideologia em Karl Marx e Ramón Grosfoguel, o ser humano para José Ortega y Gasset, estética em Arthur Schopenhauer, e um episódio sobre o fenômeno da pandemia como estado de pânico coletivo, segundo a visão do italiano Giorgio Agamben. Em linguagem acessível e voltado a quem está despertando o interesse pela mãe das ciências, a iniciativa ajuda a divulgar o conhecimento que perdeu seu espaço na Educação Básica a partir de 2017, além de mostrar a qualidade do ensino na UEL, instituição que teve o seu curso de graduação em Filosofia fechado em 1973 pelos militares, reaberto somente 20 anos mais tarde. 

Coordenador do projeto, o professor Marcos Alexandre Gomes Nalli conta que os temas são propostos pelos alunos e discutidos em grupo. Após as leituras dos textos e a gravação, o resultado é avaliado por ele, que tem o papel de sugerir alterações, novos olhares ou até correções na aplicação das teorias. No entanto, ele mesmo convoca Sócrates, que diz “sei que nada sei”, ao ponderar sobre o seu estado de abertura toda vez que precisa revisar leituras no processo de coordenação do “Escuta Pensante”. 

O episódio 39 aborda o conceito grego de Paideia, que se refere ao sistema de educação e formação integral da Grécia Antiga. (A Morte de Sócrates: Jacques-Louis David, 1787).

Nalli avalia que, ao serem visitadas, as obras que servem de base para a formação do pensamento nas Ciências Humanas e Estudos Sociais se revelam aos estudantes de uma maneira particular. Passada a fase de pré-compreensão, diria Gadamer, são os estudantes-podcasters que devem se revelar filósofos diante dos textos ao realizarem uma fusão entre dois horizontes. “Muitas vezes ainda nos surpreendemos com a forma com que o aluno ou a aluna compreendeu e transmitiu aquilo. Às vezes a ideia ainda está bruta, mas vemos que é boa, que há ideias legais ali. Então, vemos que o garoto, ou a garota, foi muito inteligente pela maneira com que abordou no podcast, porque pensou em algo que nós mesmos não pensaríamos. Em média, cada estudante pode chegar a colaborar com três ou até quatro episódios por semestre”, estima o professor.  

Filosofia pra quê?

Identidade, Educação, eutanásia e felicidade. Trabalho, justiça, linguagem, o fetichismo na música, a responsabilidade humana e a subjetividade. Temas que o avançar dos dias não foi capaz de tornar irrelevantes. Pelo contrário: a cada solução apressada que se apresenta diante dos complexos problemas do mundo, a Filosofia é o repositório conceitual capaz de fundamentar o pensamento para que a humanidade possa suspeitar o que é o justo, o belo e o bom.

Como um bom filósofo que é, há mais de 30 anos atuando como docente na UEL, o professor Marcos Alexandre Nalli explica que o nome foi escolhido para subverter o sentido de liberdade costumeiramente conferido ao formato podcastal, limitado à escuta em qualquer hora e lugar. Liberdade, neste caso, tem a ver com a busca por emancipação. O caminho? Uma escuta pensante. “A ideia era insistir que ser ouvinte ou espectador não é só ser passivo, mas é poder ouvir alguma coisa e matutar, pensar sobre isso. A possibilidade de, ao ouvir, quem está do outro lado possa fazer com isso o que quiser, inclusive pensar, e não ficar refém. A ideia é publicizar e disponibilizar a informação de relevância filosófica mesmo que o assunto não seja sobre um filósofo só”, explica. 

No episódio 50, estudantes abordam o Mito de Sísifo. (Sisifo, de Tiziano Vecellio, 1548-1549).

Mesmo com o tempero da liberdade, os estudantes preparam o conteúdo sem a pretensão de empanzinar os podouvintes. Por isso, o conhecimento é servido à mesa como um aperitivo, com episódios que possuem entre cinco e 15 minutos, tamanho ideal para quem precisa ser empreendedor de si mesmo na sociedade do cansaço, definiria o ensaísta sul-coreano-alemão Byung-Chul Han. 

O que faz o “Escuta Pensante” não ser apenas mais um podcast de Filosofia é justamente o fato de não pretender ser. Assim, futuros advogados abordam Filosofia do Direito. Estudantes de Letras falam de Filosofia da Linguagem, e a análise sobre a formação social do País é missão para os jovens historiadores apoiados em obras como “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Hollanda. Um verdadeiro banquete. 

Podcast pra quê? 

O professor Marcos Nalli defende que as Humanidades como um todo e a Filosofia em particular “precisam aprender a se situar no novo tempo”, e ocupar novos espaços para garantir sua sobrevivência. A afirmação leva em conta a perda de carga horária para disciplinas como Língua Portuguesa e Matemática com a reforma do Ensino Médio de 2017 (Lei nº 13.415/17), o que surgiu como condição para o Brasil receber financiamento internacional, conforme contratos firmados entre o Governo de Michel Temer e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), instituição que integra o Banco Mundial. 

Uma breve retomada da trajetória do ensino de Filosofia no Brasil glorifica ainda mais o podcast como ferramenta de transmissão do conhecimento, defende o professor Marcos Nalli. Quem faz coro é o Clodomiro Bannwart, egresso da primeira turma de Filosofia da UEL. 

Bannwart lembra que a Filosofia se tornou independente da igreja no país com o surgimento da Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Com o golpe militar três décadas mais tarde, boa parte dos professores é aposentada compulsoriamente ou precisa deixar o Brasil, exilada em direção às universidades da Europa. É neste cenário que um grupo de professores, em especial dois nomes muito conhecidos, fundou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), em 1969. 

Episódio 57 aborda a religião na política, utilizando a filosofia de John Locke (Disponível no final da reportagem.

“José Arthur Giannotti (in memorian) sai dali e cria junto com Fernando Henrique Cardoso o Cebrap, um centro de resistência, com professores que ficaram no seu entorno estudando ‘O Capital’ (Karl Marx). Isso naquela época, olha que loucura”, brinca. “E no final dos anos 70, com a reabertura, quem havia ido para a Europa retorna do exílio com títulos de doutores em Filosofia de universidades europeias”, conta o professor, que também foi aluno do Cebrap sob orientação do atual presidente, o professor Marcos Nobre. 

A década de 70 foi se despedindo com a promulgação da Lei da Anistia. No panorama acadêmico, o Brasil registra a criação dos primeiros cursos de pós-graduação em Filosofia, que traziam “uma característica bastante peculiar”, ensina o professor. “Como esse pessoal vai pra fora fazer pesquisas em Filosofia pura, no caso a Marilena Chauí vai estudar a Ética de Espinosa, eles estudam Filosofia sem, de fato, confrontar a realidade brasileira e trazem um modelo muito analítico, sem uma pegada, digamos, da Teoria Crítica, que é um olhar da própria realidade”. 

A década de 90 é marcada por um processo de abertura de cursos de graduação no interior do País, casos de Londrina, Maringá e Toledo. E após a virada do milênio, estas localidades passam a registrar o nascimento dos cursos de Mestrado e Doutorado, o que permite a formação de recursos humanos também fora dos grandes centros urbanos. 

“Olhando por esta perspectiva, hoje se tem um período áureo da Filosofia no país. Você tem uma consolidação institucional do pensamento no interior e nas capitais, inclusive com qualidade de produção em nível de Stricto Sensu. Por outro lado, você perde o apoio, como tivemos nos últimos governos, da participação da Filosofia nas escolas, o que acaba afastando o aluno da graduação porque ele não tem mais o espaço para lecionar e isso acaba afetando a pós-graduação”, lamenta.

A preocupação com o futuro da Filosofia como campo de trabalho é compartilhada por professores do Ensino Médio, pesquisadores e entidades, como a Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof), evidenciando o atual cenário de resistência em defesa do pensamento crítico na Educação Básica. É uma tarefa hercúlea que faz educadores se encontrarem, muitas vezes, prostrados, a exemplo de Sísifo, figura mitológica condenada a ver rolar a pedra morro abaixo apenas para ter que descer e subir novamente, por toda a eternidade. Entre um presente que pode lembrar um ensaio camusiano e um futuro bastante incerto, a esperança pode se renovar a cada novo ouvinte de um podcast de Filosofia.

(*Assessor Especial na Coordenadoria de Comunicação Social).

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