Sim, nós temos variações

Sim, nós temos variações

Grupo dissemina experiências em sala de aula e produz material didático que aborda variedade linguística do português brasileiro nas escolas.

A língua portuguesa não é para os fracos, dizem os memes nas redes sociais. Na verdade, ela é muito rica, e as variações – sejam no tempo, no espaço ou nos diferentes contextos sociais – atestam essa verdade a todo momento. Só para dar um exemplo: no Rio de Janeiro, um menino brinca com sua pipa. Mas no Rio Grande do Sul, pipa é o enorme barril onde se guarda o vinho. E barril, na Bahia, é a pipa de brinquedo. Já as variações fonéticas ornam o falar brasileiro com melodia, ritmo e fonemas: são os sotaques e outros fenômenos linguísticos.

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Edição número 1419 de
maio de 2023
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Como os professores, particularmente de língua portuguesa, devem lidar com a variedade do idioma em sua prática docente é o objetivo principal dos pesquisadores do projeto Variação Linguística em Sala de Aula (Vale), um grupo de pesquisa cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Além das variações trazidas pelos próprios alunos, os professores precisam falar das outras, encontradas na literatura, na TV, na internet e em outros espaços ou meios.

O projeto busca analisar material didático já existente e elaborar novos que contemplem conteúdos das diferentes formas linguísticas, orais e escritas, e ao mesmo tempo combater os estereótipos (como o “falar caipira”) e os preconceitos (como o “falar nordestino”), ainda muito enraizados no país. Em síntese, é propiciar que o aluno tenha consciência da ideia de adequação linguística, de modo que leve em conta as diferentes situações sociais.

Divulgação.

Para a professora Joyce Elaine de Almeida Baronas, do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas (CLCH) e coordenadora do Vale, é importante apresentar propostas didáticas mais adequadas aos professores, para evitar as abordagens superficiais ou estereotipadas. Ou pior: a variação linguística pode ser rara em alguns livros didáticos, reduzindo-se, de acordo com a pesquisadora, a um poema ou uma tirinha em quadrinhos, conteúdo para apenas uma aula e só. Sem dicionários, sem boas fontes. E boas fontes não faltam, lembra Joyce. O Atlas Linguístico do Brasil é só um exemplo de material científico, amplo e disponível.

“Claro que há livros que já apresentam boa abordagem”, aponta a professora, que entende que o livro didático só é aprovado se houver o conteúdo variacionista. O que ela e o grupo defendem é explorar mais ainda a riqueza da língua, expressa na riqueza textual do Brasil. Assim, da carta de Pero Vaz de Caminha aos e-mails corporativos, e da música de Lupicínio Rodrigues às do Ultraje a Rigor (“Inútil” só no título), há muito com o que trabalhar.

“Vossa mercê na pharmácia

Há muitos anos, a forma “cê” coexiste com o “você” no falar brasileiro, uma transformação que não indica em nada que tudo começou com um “vossa mercê”, na Portugal do século XIV. Já o “ph” deu lugar ao “f” só no século XX. E como a língua é viva, ela continua dinâmica e sujeita a mudanças em diferentes contextos. Na imprensa atual, por exemplo, seria “século 20” e “segue dinâmica”. Num jornal do século XIX, “dir-se-ia” diferente também. A mesóclise é um exemplo de variação cada vez menos usada, assim como o pronome e verbos da segunda pessoa do plural (vós), praticamente restrito aos espaços religiosos (como na Bíblia e nas missas). E quem ainda usa pretérito mais que perfeito nas conversas do dia-a-dia? Também pudera…

Uma das grandes preocupações dos linguistas são os rótulos de “falar certo” ou “falar errado”. Isto é preconceito linguístico. “Ninguém fala a norma padrão”, afirma a professora Joyce. Pareceria artificial. “Todos variam. Pode-se até falar a norma culta, mas com ‘licenças’ permitidas pelo contexto”, observa. Ela exemplifica com a própria entrevista: é um diálogo formal, com um tema acadêmico, mas permite o uso de um “diferentchi” ou “naturau” na pronúncia, considerando também a região geográfica. Joyce lembra que na forma escrita já não existe variação – é erro ortográfico. Na oral, pode levar à estigmatização.

Para a professora Joyce Elaine de Almeida Baronas, é importante apresentar propostas didáticas
mais adequadas aos professores, para evitar as abordagens superficiais ou estereotipadas (Foto: André Ridão/Agência UEL)

Pedagogia da variação

A coordenadora do Vale defende, então, a chamada Pedagogia da Variação, em que ao ensino da língua padrão se soma a perspectiva variacionista, que além de tudo é inclusiva, identitária e leva ao pertencimento social. Sem dúvida, a norma culta é imprescindível, pois ela é uma variação de poder, de acesso a contextos como a academia e a cargos públicos. Mas, é preciso conhecer a culta e as outras. “Para ser livre, é preciso saber”, pondera Joyce.

Esta abordagem encontra respaldo em políticas educacionais. A professora fala dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), do final da década de 90, que produziram alterações nos livros e abriram discussões, assim como, mais recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), implantada em 2017. “O ideal seria trabalhar com a individualidade de cada aluno. Mas, houve mudanças, e os professores estão mais atentos”, comenta Joyce.

Livro

Os pesquisadores do Vale lançaram, no mês de abril, o livro “Variação linguística na escola”. A obra é uma realização do projeto com participação da professora Stella Maris Bortoni-Ricardo, docente aposentada da Universidade de Brasília (UnB). Junto com ela, a professora Joyce é organizadora dos capítulos que reúnem mais 11 pesquisadores. Além disso, ela tem, atualmente, 10 orientandos de doutorado no desenvolvimento de teses sobre variação e ensino.

Para o futuro próximo, a ideia é desenvolver um projeto de Extensão – já aprovado – para melhorar a formação dos professores e sua atuação em sala de aula, em ações de educação continuada que levem em conta cada professor e suas turmas.

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