Matar em nome da vida?

Matar em nome da vida?

Professor desenvolve pesquisas sobre Biopolítica, conceito estudado por Michel Foucault que descreve formas e mecanismos pelos quais o poder é exercido sobre populações.

O professor Marcos Alexandre Gomes Nalli, do Departamento de Filosofia (CLCH), coordena atualmente dois projetos de pesquisa com foco no mesmo conceito: “A Biopolítica como Biotécnica”, iniciado em 2017, e “A vida como objeto da Biopolítica”, desde 2020, ambos com participação de alunos de Iniciação Científica (IC). O docente foi um dos contemplados pelo edital do CNPq, de março, que concedeu bolsa produtividade, indicativo da relevante contribuição de seus estudos. Não foi a primeira vez.

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Edição número 1420
de junho de 2023
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Nalli tem uma longa trajetória de estudos do filósofo, teórico social e historiador das ideias Michel Foucault (1926-1984), que escreveu sobre a Biopolítica nos anos 70. O intelectual francês foi seu foco no mestrado, doutorado e pós-doutorado, concluído em 2008.

De acordo com o pesquisador, o conceito de Biopolítica surgiu na década de 10 do século XX e apresentou três “movimentos”. Até a década de 30, na Alemanha; nos anos 50 e 60, na França e Suíça, numa vertente mais humanista; e nos anos 60 e 70, uma perspectiva anglo-saxônica, mais preocupada com a ecologia. Foucault, que já desenvolvia seu pensamento em torno de mecanismos sociais de controle, como escolas, prisões e manicômios, falava em “biopoder”, isto é, no exercício do poder sobre a vida (e corpo) dos indivíduos.

O professor conta que, casualmente, Foucault utilizou o termo “Biolítica” pela primeira vez justamente numa passagem pelo Brasil, em uma palestra por ele proferida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (na época, Universidade do Estado da Guanabara/UEG), em 30 de outubro de 1974. Em 1976, o filósofo publicou o livro “Em defesa da sociedade”, em que abordou o racismo praticado pelo Estado (a exemplo do nazismo) e retomou o conceito. Em 1979, publicou a obra “Nascimento da Biopolítica”. Depois disso, o tema foi deixado de lado e retomado na metade dos anos 90, por exemplo, pelo filósofo italiano Giorgio Agamben.

“Se a política é para a vida, então por que se mata?” – a questão é o paradoxo que envolve a Biopolítica, diz o professor Marcos Nalli.

Paradoxo

Como o nome sugere, Biopolítica é uma “política pela vida”. Ela foca sobre aspectos da vida humana como a natalidade, doenças, mortalidade, meio ambiente e a atuação do Estado em todos eles. O objetivo é promover e proteger a vida. E aí surge o paradoxo: por que então se mata? Este paradoxo pode ser ilustrado por um pensamento do dramaturgo alemão Bertholt Brecht (1898-1956): “Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando sua doença, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para a guerra etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado”.

A saída do paradoxo da Biopolítica, na verdade, conduz ao seu “nó górdio”, diz o professor Marcos Nalli. O problema está justamente aí: vida, mas não para todos. Não à toa, ele estudou a eugenia no mestrado, e menciona uma lei dos anos 30 que estabelecia a esterilização compulsória das mulheres com doenças mentais nos países escandinavos. Entre os anos 30 e 60, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Noruega teriam esterilizado cerca de 74 mil mulheres forçadamente. Conforme o pesquisador, na França, em razão da crise durante a Segunda Guerra, uma lei suspendeu os envios de alimentos a manicômios.

O que a História demonstra, portanto, é um racismo em sentido amplo, além das etnias, que pode atingir qualquer grupo social. O próprio professor fala de um “racismo de mercado”, pelo qual Estado e iniciativa privada deliberadamente se alinham para controlar e oprimir indivíduos. Um exemplo é a transformação de prisioneiros em mão-de-obra barata, ou escrava, como já ocorreu na Alemanha nazista e nas ditaduras da Argentina e do Chile.

No Brasil, Getúlio Vargas respondeu a um ataque da Marinha alemã a uma embarcação brasileira com o Decreto-Lei 4166 (de 11/03/1942). Ele estabeleceu que “os bens e direitos dos súditos alemães, japoneses e italianos, pessoas físicas e jurídicas, respondem pelo prejuízo” resultantes de atos de agressão do Eixo.

Ou seja, é um racismo que vai muito além da desigualdade de oportunidades de inserção no mercado. Nalli afirma que o mercado explora a própria dignidade humana, como se vê nas denúncias contra trabalho análogo à escravidão, ainda muito frequente. Para o professor, a terceirização também é uma política segregacionista, assim como outras formas de precarização das relações de trabalho.

Problematização

O pesquisador comenta, ainda, que a Biopolítica é interdisciplinar, ou seja, está aberta a estudos de muitas outras áreas, como a História, Sociologia, Direito, Geografia e Arquitetura. Mas não é uma disciplina, e sim uma problematização. Tem havido debates, encontros científicos, publicações, mas em torno de problemas e de conhecimentos em construção, em toda uma rede de pesquisadores de diferentes campos. Os projetos do professor, por exemplo, envolvem também estudantes de pós-graduação, em todos os níveis, outros docentes e até um pesquisador da Espanha, além de promover reuniões quinzenais de um Grupo de Trabalho.

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