Dos filhos de outros solos
Dos filhos de outros solos
Estudantes se aprofundam na compreensão dos institutos de refúgio e asilo, dos movimentos migratórios e dos deslocamentos forçados de populações pelo mundo.No tempo em que se leva para ler o título desta matéria, uma pessoa a mais no mundo está sendo forçada a se deslocar, dentro ou fora de seu país, por razões políticas, religiosas, ambientais ou alguma outra. Por dia, são mais de 44 mil pessoas. Num ano, pode chegar a quase 70 milhões, como aconteceu em 2017.
Este é apenas um dado, perto do cenário mundial, foco do projeto de ensino “Programa de Formação Complementar no ensino de graduação em refúgio, asilo político e migrações”, coordenado pelo professor Cláudio César Machado Moreno, atual chefe do Departamento de Direito Privado.
Docente de Direito Internacional Privado, o professor sentiu a necessidade do projeto e o interesse dos alunos quando participava de um outro, na área. A realidade está aí: Londrina recebeu um contingente de venezuelanos, enquanto cidades da região metropolitana, como Cambé e Rolândia, acolheram haitianos e bengaleses.
O projeto tem como fontes de dados, entre outros, órgãos como a Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra). Instituído em 2013 por um termo de cooperação entre o Ministério do Trabalho, Conselho Nacional de Imigração e Universidade de Brasília (UnB), o OBMigra tem registrado um crescente número de pedidos de refúgio de estrangeiros no Brasil, só interrompido pela pandemia, que restringiu os deslocamentos. Se em 2011 o Ministério da Justiça registrou 1.465 pedidos, em 2019 foram 82.552. Em 2020 e 2021, caíram para cerca de 29 mil, e em 2022 o número voltou a subir, atingindo 50.355. Destes, 4,4% vieram para o Paraná.
Do total de refugiados, quase 1 em cada 3 (33.753) eram venezuelanos, seguidos de cubanos, angolanos, colombianos, chineses, nigerianos, afegãos e peruanos. A Venezuela também chama a atenção pela faixa etária dos refugiados: 12.444 eram menores de 15 anos. Já os pedidos de mulheres vêm mais do Haiti e República Dominicana. No panorama mundial, Turquia e Colômbia são os países que mais recebem estrangeiros. Foram quase 3 milhões só no ano passado.
O deslocamento forçado pode ocorrer por várias razões. Um caso interno é o de Sobradinho (Bahia), nos anos 70. Por causa da formação do lago em decorrência da barragem no rio São Francisco, as populações de cinco cidades tiveram que abandonar suas casas e se mudar para outros pontos, rebatizados com os mesmos nomes: Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado e Sobradinho – como cantaram Sá e Guarabira. A obra é grandiosa – o lago pode ser visto de órbita. Mas custou o desalojamento de aproximadamente 70 mil pessoas.
Também, o deslocamento pode ser por guerra, como é o caso da Síria, Ucrânia e Sudão do Sul, onde há deslocamentos internos e para fora do país. Pode ser ainda por questões ambientais ou econômicas, mas geram um problema: ambas não se encaixam no refúgio para o Brasil. Aliás, este é o tema da tese de Doutorado do professor Cláudio, que pesquisa uma ressignificação do conceito de refugiado.
É possível ainda que a própria ação do Estado force parte de sua população a se deslocar. É o caso das mulheres afegãs, muito oprimidas pelas leis de lá. Ou o Estado pode apenas “fazer vista grossa”, como em Mianmar (Sudeste asiático), onde uma minoria muçulmana, os Rohingya, é perseguida. Perto de 3.000 aldeias deles foram incendiadas nos últimos anos, e cerca de 200.000 mil fugiram para Bangladesh nos últimos 20 anos.
Refúgio ou asilo?
O coordenador do programa explica a diferença entre refúgio e asilo. Normalmente, o refúgio é concedido a um grupo ou conjunto mais numeroso de pessoas, enquanto o asilo costuma ser um caso individual ou de poucas pessoas. O refúgio é solicitado em razão de perseguição religiosa, guerra, dissidência política, e é concedido pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça. Além disso, existe o Estatuto do Refugiado (Lei 9.474/97).
Já o asilo tem natureza política, ou seja, é especificamente associado à perseguição política no país de origem. Não há uma lei específica, e a concessão é constitucionalmente estabelecida (artigo 4º) e prerrogativa do presidente da República.
Um estrangeiro que solicita refúgio no Brasil e não é inadmitido de pronto recebe um visto provisório, o que já lhe garante todos os direitos fundamentais de um brasileiro, como o atendimento no SUS e registro em carteira de trabalho. Mas, a partir daí, ele fica por sua própria conta. Outros países oferecem algum auxílio, como moradia ou bolsa, porém o Brasil não dispõe de tais políticas públicas. Aí, normalmente entram as organizações não-governamentais e as igrejas.
O professor explica que algumas poucas cidades, como São Paulo, possuem um Conselho para Refugiados. Não é à toa: 40% deles vão para lá. Já em cidades como Londrina, é a Cáritas, da Igreja Católica, que oferece algum suporte. Ela é a maior entidade mundial de ajuda a refugiados. Entretanto, o Paraná possui o Conselho Estadual dos Direitos de Refugiados, Migrantes e Apátridas (Cerma), instituído pela Lei 18.465/2015 e ligado à Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania.
Por falar em cidadania, este é outro processo, chamado de naturalização, ou seja, a aquisição da nacionalidade brasileira. Comumente, quando um estrangeiro obtém a cidadania brasileira, perde a original, mas nem sempre: há vários casos em que é possível manter as duas. Outro ponto é que aquele reconhecido como refugiado não pode voltar ao país de origem, sob pena de perder a condição.
País de imigrantes
Cláudio Moreno não deixa de lembrar: o Brasil é um país de imigrantes. Foram muitas “ondas” imigratórias durante cinco séculos, várias incentivadas pelos governos, além das migrações entre regiões, normalmente em razão dos ciclos econômicos. “Londrina é um caso clássico”, resume, referindo-se a toda a propaganda governamental envolvida no incentivo à ocupação do Norte/Noroeste do Paraná, um século atrás.
O professor aponta, como curiosidade, um aspecto que até facilitou as migrações no país: a pena de degredo. Durante o período colonial, o Brasil e a África receberam degredados de Portugal pelos mais variados crimes previstos na legislação lusa: de furtos e blasfêmias a heresias e fabricação de moedas falsas, incluindo aí o lesa-majestade. Se o degredado retornasse a Portugal, enfrentaria a pena de morte. Uma capital brasileira nasceu, no século XVII, relacionada a esta ideia: Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis.
Embora muitas vezes romantizada, a vinda dos imigrantes não foi fácil. Além das condições geográficas diferentes, a maioria não encontrou subsídios do governo, e pior: grande parte chegou antes da abolição da escravatura, ou durante a transição do trabalho escravo para assalariado, o que tornou muito difíceis as relações de trabalho. “Muitos ainda encontraram a figura do feitor das fazendas de café”, observa o professor. Para quem fugiu da falta de oportunidades ou até de guerras, a chegada não foi bem a descoberta de Utopia.
Proteção legal
De acordo com o professor Cláudio, as leis brasileiras sobre refúgio são consideradas um marco mundial. Internacionalmente, ele conta, legislações sobre o tema eram basicamente restritas aos europeus, por causa das Grandes Guerras. Depois da Segunda é que o interesse aumentou. Assim, existem fundamentalmente duas Convenções Internacionais, a de Genebra (1951) e a de Nova York (1967), que ampliou os direitos a outros povos, não-europeus. O docente cita ainda a Declaração de Cartagena (1984), que tratou do Asilo e Proteção Internacional de Refugiados na América Latina.