Ritmo e poesia sob novas condições

Ritmo e poesia sob novas condições

Pesquisadora estuda mudanças estéticas e sociais do Rap que caracterizam uma “nova condição” do gênero, com inovações e ampliação do espaço que ocupa.

O rap (rhythm and poetry) nasceu há cerca de meio século nos Estados Unidos. Com a mundialização da cultura, o gênero foi acolhido em outros países, onde elementos locais foram acrescentados, tornando-o mais rico. Nos anos 80, o ritmo chegou a São Paulo e, na última década do século XX, ganhou letras mais críticas. Associado à periferia e à marginalidade, o rap tornou-se uma voz contra as contradições e a desigualdade social.

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Edição número 1427
de fevereiro de 2024
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A partir dos anos 2000, porém, algumas mudanças expressivas começaram a ser sentidas no gênero, que passou a ocupar espaços sociais para ele inéditos até então, assim como experimentar novos elementos estéticos.

É esta transformação o foco do projeto de pesquisa da professora Daniela Vieira dos Santos (Departamento de Ciências Sociais), intitulado “A nova condição do rap no Brasil”. O estudo é uma sequência do pós-doutorado feito na Unicamp, finalizado em 2019. Um período de muito aprendizado, sintetiza Daniela.

Docente da UEL desde 2020, ela concebeu o projeto a partir dos muitos desdobramentos que a pesquisa pós-doutoral descortinou. As mudanças observadas foram mais significativas a partir de 2010, mas as primeiras datam dos anos 90, segundo ela explica. Contudo, os estudos mostraram que não se trata de “novas gerações” do RAP, mas de uma categoria diferente: a “nova condição”.

O rap no Brasil, que começou socialmente mais restrito, ganhou neste século mais espaços sociais, em âmbito nacional, legitimando-se muito além das periferias e até das fronteiras, pois rappers brasileiros promoveram turnês internacionais e gravaram em outros países. Além disso, as causas abordadas pelas letras já não se limitam às da periferia dos grandes centros urbanos (como a pobreza), mas alcançam também as identitárias, como a orientação sexual. “O rap nasceu machista, mas já mudou”, anota a pesquisadora.

E assim o gênero, inicialmente também restrito em público, ampliou-se. Jovens de outras classes e condições sociais começaram a apreciá-lo. O fato de a nova condição ser caracterizada pela maior presença na mídia e em outros espaços (como livrarias) contribuiu para esta expansão. Além disso, a professora Daniela credita parte desta nova condição também ao contexto político, dos governos Lula e Dilma, que abriram espaço para esta e outras expressões culturais antes marginalizadas.

Estética

Esteticamente falando, o rap é caracterizado pelo flow (fluidez), que articula ritmos e rimas. Nos anos 90, eram muito comuns as colagens (ou samples), que misturavam músicas, sobrepondo trechos. Não raro, as canções coladas eram de outros gêneros, como o pop, e até o erudito. Exemplo é “Prince Igor” (1997), do rapper norte americano Warren G., com participação da soprano norueguesa Sissel Kyrkjebø, que canta trechos da ópera “Prince Igor”, obra inacabada do compositor russo Alexander Borodin, que morreu em 1887.

A nova condição do rap não mais é pródiga em samples mas trouxe novidades estéticas, que continuam criando algo novo e formando o que se pode chamar de uma “biblioteca musical” de cada canção. Para Daniela, isso é rico, é fabuloso, e ainda é educativo para quem ouve. Promove diálogo e ressignificação das músicas. Uma das preocupações atuais, segundo a pesquisadora, é não repetir, experimentar algo diferente.

Racionais MCs e Emicida

Não se pode falar do rap no Brasil sem mencionar alguns nomes, destaca Daniela. Dois deles são os Racionais MC e Emicida. O primeiro, criado em São Paulo, 1988, é uma referência do gênero no país, influenciou os artistas que vieram depois dele e ganhou projeção internacional. É considerado por muitos o “pai do rap brasileiro”, com sua batida marcada e letras que põem o dedo na ferida.

Suas músicas, especialmente dos primeiros discos, denunciam o racismo, a pobreza das periferias urbanas, a violência policial, o tráfico de drogas, a ausência do Estado e o crime organizado. A música “Diário de um detento” (1997), por exemplo, foi baseada nas anotações de um ex-interno do presídio Carandiru, palco de um massacre em 1992, com a morte de 111 presos. O clip, que tem ares de reportagem, ou documentário, ganhou dois prêmios da MTV, e foi considerado o 2º melhor de todos os tempos em uma lista da Folha de S. Paulo, em 2012.

Já o paulistano Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, é considerado a grande revelação dos anos 2000. Tanto que seu nome artístico nasceu das muitas vitórias nas batalhas de improvisação em que arrasou os adversários, tornando-se assim um “matador de rivais”, ou um “MCcida”.

Não se pode falar do rap no Brasil sem mencionar alguns nomes. Dois deles são os Racionais MC e Emicida, destaca Daniela.

De acordo com a pesquisadora, Emicida é um rapper típico da nova condição: mais profissionalizado, mais maleável (não tão duro) em suas letras, produz um rap que convida mais à dança, e é uma figura mais midiática, ou seja, tem músicas em trilhas de novelas ou filmes, foi repórter de TV e até coapresenta um programa no canal GNT. Em 2021, realizou uma série de palestras e entrevistas na Universidade de Coimbra. E está lá nos streamings e redes sociais.

Hip hop

Conforme explica a professora Daniela, a pesquisa tem mostrado que a periferia mudou, os rappers mudaram e as músicas também. Estas estão mais curtas, com menos colagens e mais dançantes. Mudou o modo de produção das músicas, a juventude que as ouve. Um dos pilares da cultura hip hop, o rap se destaca, ainda que os demais pilares também expressem transformações. O break, por exemplo, tornou-se esporte olímpico. Não sem alguma polêmica em torno. E o grafite extrapolou os muros e entrou num processo de “artificação”, ou seja, ganhou o status de arte e passou a ser visto em outros espaços, como museus e edifícios.

Segundo Daniela, o hip hop se institucionalizou, é patrimônio cultural brasileiro.
Trata-se um processo de legitimação destas expressões culturais que, de acordo com a pesquisadora, deve continuar se fortalecendo, até porque vem ganhando uma dimensão estatal, isto é, apoio e incentivo do governo federal. Tanto é que existem projetos para levar a cultura do hip hop às escolas, como o “Rap-sando a Educação”.

Disseminação

A professora Daniela tem duas orientandas de graduação em Ciências Sociais estudando o rap feminino. Também é docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UEL (PPGSOC) e tem apresentado o projeto em eventos científicos nacionais e internacionais, além de ter realizado palestras na própria UEL (extensão) e no SESC.

Foi uma das organizadoras do livro “Racionais MCs: entre o gatilho e a tempestade” (Perspectiva, 2023, 320p.) e publicou artigo na revista Novos Estudos Cebrap (Qualis 1A) junto com o professor Derek Pardue, estudioso da Cultura Brasileira na Universidade de Aarhus (Dinamarca). Ainda, é co-organizadora da coleção “Hip Hop em Perspectiva” (nome da editora que a publica), com obras que analisam a complexidade da cultura jovem das periferias. Já foram lançados quatro livros e o quinto pode chegar às prateleiras ainda este semestre.

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