Brasil colônia é tema do livro “Beijo a Mão que me Condena” lançado pela Eduel

Brasil colônia é tema do livro “Beijo a Mão que me Condena” lançado pela Eduel

Músico, instrumentista e professor, padre José Maurício Nunes Garcia deixou valiosa obra, entre elas a modinha que dá título ao livro.

O livro “Beijo a Mão que me Condena: Resistência e Embranquecimento Histórico do Padre José Maurício Nunes Garcia” – 224 páginas, 2023 – de autoria de Pedro Razzante Vaccari, está entre os recentes lançamentos da Eduel. É uma obra que desvenda com rigor a trajetória, vida e obra do compositor brasileiro padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), atuante no final do século XVIII e início do XIX.
Embora poucas pesquisas tenham se debruçado sobre a essência da música do compositor, segundo estudiosos, ao lado de Carlos Gomes e Villa-Lobos, sempre reportado como “mestiço”, é considerado um dos mais notáveis compositores da história da música no Brasil.

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Edição número 1427
de fevereiro de 2024
Confira a edição completa

Confira a entrevista que o autor do livro, Pedro Razzante Vaccari, pós-doutor pela USP e doutor em Música pela UNESP, concedeu à Eduel.

Eduel: Como surgiu o interesse em publicar um livro sobre o compositor brasileiro, Padre José Maurício Nunes Garcia?

Pedro Razzante Vaccari – Era um desejo recorrente, desde a minha graduação, em Canto, pela Unesp, nos anos 2000. Procurava um tema que abarcasse tanto a minha atuação em música brasileira, como a prática de música antiga e suas intersecções interdisciplinares. Isso foi aprofundado no Mestrado, com a pesquisa sobre música nordestina – embolada e regionalismos – e no Doutorado sugeri o tema do Padre José Maurício, calcado em um estudo etnomusicológico/antropológico. Aos poucos foi me instigando a forma como o Padre era tratado nos estudos oficiais de Musicologia, desde o século XIX, como um compositor “branco”, “mulato” ou “quase branco”, mesmo quando apontado que em sua genealogia havia uma parcela significativa de sangue africano.

O título do livro é o nome de uma modinha composta pelo padre José Maurício Nunes Garcia. O que ela representa?

Ao pesquisar sobretudo sua biografia, amparado pelas Ciências Sociais, contextualizando o compositor carioca, neto de escravizadas de ambos os lados genealógicos, pude descobrir o Padre Maurício contestador social, através de sua modinha mais divulgada – “Beijo a mão que me condena”. Pude entrever que uma simples modinha do século XIX, publicada em forma póstuma por seu filho, podia guardar uma reivindicação social por melhores condições de trabalho – associando a frase ao ritual de “Beijo a mão” do Rei, no caso o Rei D. João VI, contextualizada pelo entorno da Corte Real Portuguesa fugida do avanço napoleônico na Europa.

Arte: Eduel

Há muitos outros estudos sobre o compositor?

A biografia mais disseminada do Padre Maurício ainda é a da pesquisadora e regente Cleofe Person de Mattos, de 1997, e que, realmente, constitui um marco na historiografia musical brasileira – é a primeira biografia sobre o Padre a utilizar fontes primárias, e a primeira a se debruçar efetivamente sobre a sua genealogia familiar. Entretanto mesmo a biografia de Mattos é unidimensional, estática e romantizada, revelando um compositor negro com dotes sobrenaturais ao órgão, improvisatórios e uma verve notadamente divina, como se fora um “Mozart tropical”.

Além do mais, Mattos incide, com frequência, em estereótipos e perspectivas deturpadas com relação a termos que a antropologia demorou a sanar – termos como “criaturas escuras”, por exemplo, ao se referir aos antepassados de José Maurício. Procurei, desta forma, rever e revisar o conteúdo apresentado pelas biografias do compositor, aplicando a metodologia empregada pelas Ciências Humanas e uma bibliografia contemporânea, com nomes como Kabengele Munanga e Abdias Nascimento. O estudo interdisciplinar foi necessário para uma ampla pesquisa que abarcasse, além dos aspectos musicais, sua profundidade humana – os anseios, as dificuldades e os embates travados por um padre negro compositor, no seio da Igreja Católica colonial oitocentista brasileira. 

Comente sobre os “ornamentos” embranquecedores mencionados no livro. Quais são e como funcionam?

Ao longo do século XIX e grande parte do XX, os historiadores da Música e musicólogos, preocupados apenas com o conteúdo estético das obras de José Maurício, resignavam-se a alcunhá-lo com hipérboles como “Mozart fluminense” ou os eufemismos “mulato”, “mulato claro” e “branco escuro”, objetivando, talvez, embranquecê-lo devido a um processo histórico colonial que culminaria no nacionalismo do século XX. Com a publicação da biografia de Rossini Tavares de Lima, em 1941, pela primeira vez temos um retrato de um negro na capa de uma biografia do Padre, e a terminologia “preto” e “negro” que permeiam o livro.

Por meio dessa pesquisa pude comprovar que houve um deliberado embranquecimento de retratos e pinturas feitos sobre José Maurício, desde o século XIX, traduzidos por suavizações propositais de traços negroides, como os fenótipos – textura do cabelo e comissura dos lábios, epiderme e matizes. Desde o primeiro retrato a óleo pintado por seu filho, no século XIX, a historiografia musical brasileira tratou de embranquecê-lo, seja nos cânones pictóricos e na iconografia, seja nos relatos de seus pormenores físicos, sempre aproximando-o mais do branco do que do negro.

Pedro Razzante Vaccari, autor do livro.

Este processo encamparia a teoria nacionalista do clareamento perpetrado pelas elites políticas do país, que haviam importado a teoria da “seleção eugênica” da Europa e dos EUA, e que seria a base do nacionalismo da Era Vargas (1930-1945). O ideal dessa teoria das raças era passar ao mundo a imagem de um Brasil cada vez mais miscigenado onde, num futuro, seria plenamente branco. Para isso, foi necessário o branqueamento de figuras proeminentes da cultura brasileira, como Machado de Assis, Carlos Gomes, Chiquinha Gonzaga e o Padre José Maurício, para citar somente alguns. 

Por que o livro ajuda a refletir sobre a necessidade de repensar as narrativas construídas em torno da historiografia musical brasileira?

Como todo grande polo de cultura, a historiografia musical reflete a política dominante do Brasil dos oitocentos até hoje, seus meandros, desenvolvimento, focos e problemas. A temática da história da música brasileira, de modo similar à literatura, gira em torno do “índio europeizado” no século XIX, e da “mulata sestrosa” no século XX, onde as raças que não eram as europeias foram estigmatizadas e tornadas mais similares às brancas, seja nos costumes, roupas, indumentárias, arte, filosofia e antropologia.

A partir da publicação de “O mulato”, de Aloísio de Azevedo, em 1880, inaugurando o Realismo em literatura no Brasil, a temática do “índio” seria substituída pela do “mulato” – essa dinâmica flui mais ou menos regularmente até o advento do Modernismo, quando figuras como Jeca Tatu e Macunaíma perpetuam o estigma do brasileiro preguiçoso e naturalmente indolente. Na Música nada menos que dois de nossos mais consagrados compositores, José Maurício e Carlos Gomes, sofreriam um branqueamento deliberado a partir de uma construção iconográfica romanceada e duvidosa, José Maurício passando à posteridade como um padre humilde, resignado, tacanho e que “nada pedia”. Com a modinha “Beijo a mão que me condena”, através de uma análise antropológica, procurei desmistificar o epíteto de “Mozart dos trópicos”, construindo uma abordagem mais humana e menos eurocentrada.

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