O fantástico e o maravilhoso no Surrealismo
O fantástico e o maravilhoso no Surrealismo
Há no Surrealismo a aceitação incondicional do homem como eterno sonhador e a imaginação como sua principal faculdade (Breton, 2001). A concepção de imaginação dos surrealistas não se limita a reapresentar o que chamamos de real; ela é, sobretudo, imaginação criadora, fonte de novas possibilidades voltada para o por vir. Os surrealistas buscavam transformar a […]Há no Surrealismo a aceitação incondicional do homem como eterno sonhador e a imaginação como sua principal faculdade (Breton, 2001). A concepção de imaginação dos surrealistas não se limita a reapresentar o que chamamos de real; ela é, sobretudo, imaginação criadora, fonte de novas possibilidades voltada para o por vir. Os surrealistas buscavam transformar a vida, mudar o mundo e a busca pelo maravilhoso era parte importante desse processo.
Mas, afinal, o que é o maravilhoso para os surrealistas? Embora o termo “maravilhoso” esteja presente em vários textos, de naturezas diversas, de autoria dos surrealistas, na maioria das vezes, ele é vago; ora equivale ao fantástico, ora à poesia, ora à surrealidade. Embora André Breton não tenha definido e nem teorizado sobre o maravilhoso, segundo ele, o maravilhoso varia de época para época e participa, misteriosamente, de uma espécie de revelação geral de que só nos chegam os pormenores: as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo apto a mexer com a sensibilidade humana por algum tempo. Ele reconhece que o maravilhoso se manifesta, diferentemente, nas histórias mitológicas, nos contos de fada, nas criações românticas, nos romances góticos, porque correspondem a épocas diferentes, mas em todas elas encontramos a presença irremediável da inquietação humana (Breton, 2001).
Ainda que os termos “fantástico” e “maravilhoso” sejam apresentados pelos surrealistas ora como opostos, ora como coincidentes, o que é certo é os surrealistas se opõem ao fantástico enquanto efeito fictício e, portanto, literário. Essa oposição deve ser compreendida a partir da negação da realidade como algo dado e externo ao homem e, portanto, como uma crítica ao positivismo do século XIX. O homem, para o Surrealismo é, ele mesmo, “uma fronteira consciente entre esses dois mundos: aquele exterior e limitado e aquele interior, múltiplo e ilimitado” (Dantas, 2017).
O maravilhoso é a possibilidade de contato entre esses dois mundos. O fantástico da ordem da ficção, é para Breton, sem consequências enquanto o maravilhoso se situa no extremo oposto, é uma questão ontológica e a sua revelação nos faz compreender a vida como surrealidade, ou seja, a vida como repleta de eventos surpreendentes e insólitos porque neles estão abolidas as oposições entre real e imaginário, consciente e inconsciente, subjetividade e objetividade. Evidentemente, a concepção surrealista acerca do maravilhoso está relacionada a um novo paradigma: a descoberta do inconsciente por Freud.
Tzvetan Todorov, com sua obra Introdução à literatura fantástica (1980), teve o mérito de chamar a atenção dos estudiosos para a literatura de modalidade fantástica. Para ele, “a expressão ‘literatura fantástica’ se refere a uma variedade da literatura ou, como se diz normalmente, a um “gênero literário” que traz à baila seres imaginários (vampiros, diabos, entre outros) e eventos impossíveis de serem explicados pelas leis que nos são familiares e que geram a incerteza: é real ou imaginário? realidade ou sonho? verdade ou ilusão? Para ele, o fantástico não dura mais do que um momento de dúvida, de vacilação comum ao leitor e ao personagem, diante do que é ou não “realidade”. Ao final da história, a opção (do leitor ou do personagem) diante da dúvida desemboca em duas possibilidades. Se decidir que as leis da realidade ficam intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra pertence a outro gênero: o estranho. Se, pelo contrário, decide que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso. (Todorov, 1980).
Para Todorov, o maravilhoso é uma estratégia literária caracterizada pela ausência de surpresa diante de acontecimentos insólitos e sobrenaturais, como ocorre nos contos de fadas, todavia, os contos de fadas é uma das variedades do maravilhoso na taxionomia todoroviana. Todorov admite que o maravilhoso supera um estudo que pretende ser literário, como o dele, uma vez que ele é também um fenômeno antropológico.
Não por acaso, do grupo surrealista, Pierre Mabille e Michel Leiris foram os que mais de dedicaram a reflexão acerca do maravilhoso. Mabille transitava entre a medicina, a antropologia e a poesia. Leiris, entre a etnografia e a literatura. Para Mabille (2002), o maravilhoso está entre as coisas, entre os seres, nos espaços onde nossos sentidos não o percebem diretamente, onde transformações são elaboradas e exprime a necessidade humana de ultrapassar limites do tempo, do espaço. Para Leiris (apud Collani, 2007), cabe à imaginação encontrar o maravilhoso, não importa onde, uma vez que ele seria, sempre, uma projeção do mundo interior do homem. O que distingue o maravilhoso dos surrealistas do maravilhoso todoroviano é o fato dele não ser um recurso literário, mas em evento imanente à vida, ao próprio homem e que não se opõe ao “mundo real”.
Ir ao encontro do maravilhoso implicava na flanerie pela cidade, nos passeios pelo mercado de pulgas, na busca pelo grande amor. Mas a aventura dos surrealistas em busca do maravilhoso foi muito mais longe: nos processos de criação da arte naïf e da arte bruta; nas experiências com o sonambulismo, com a escrita e com o desenho automático e com técnicas artísticas como a colagem e a frottage. Podemos dizer que o ponto comum entre todas essas atividades é que todas elas implicam na perturbação da causalidade lógica, na manifestação do desejo inconsciente e na projeção da imaginação.
Mas, afinal, o que é o maravilhoso para os surrealistas? Um evento fortuito, surpreendente, fugaz intimamente ligado à inquietação humana, que provoca o espanto; ele é o inefável. Nas palavras de Mabillle (1946), é o magma flamejante pulsando no centro da revolta, é a tensão extrema do ser no momento do encontro do desejo inconsciente com a realidade exterior.
Cem anos depois da publicação do Manifesto do Surrealismo, de 1924, o terrível diagnóstico apresentado por André Breton se mantém atual: o homem, esse sonhador definitivo, passa em revista suas conquistas, se encontra cada dia mais descontente com seu destino e, se alguma lucidez lhe resta, ele deve voltar-se para sua própria infância. Voltar-se para sua própria infância é se surpreender com o maravilhoso, é dar asas à imaginAção e assim, impulsionar a transformAção da realidade opaca, opressora e deprimente num mundo reencantado.
Referências:
BRETON, André (2001). Manifestos do Surrealismo. Sergio Pachá (Trad.). Rio de Janeiro: Nau Editora.
COLLANI, Tania (2007). “Le merveilleux surréaliste de Michel Leiris et la conciliation avec la modernité”. In: Revue Cahiers Leiris n.2. Mercourt: Editions Les Cahiers, novembre. p.22-37.
DANTAS, Marta (2017). “O castelo de André Breton: o fantástico e o maravilhoso no surrealismo”. In: Revista Abusões, n.05 v. 05, p. 282-313.
MABILLE, Pierre (1946). Le Merveilleux. Paris: Les Éditions des Quartre Vents.
TODOROV, Tzvetan (1980). Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva.
*Docente do Departamento de Arte Visual (Ceca) e do Programa de Pós-Graduação em Letras; coordenadora do projeto de pesquisa “O fantástico e o maravilhoso: uma investigação sobre a concepção de realidade e de surrealidade, do literário e do extra-literário no Surrealismo”. Autora do livro “Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio” (Unesp, 2010) e diretora da Casa da Cultura.