Cristianismo com sotaque nórdico

Cristianismo com sotaque nórdico

A partir de fontes historiográficas e hagiográficas, estudo investiga a formação da religião cristã nos países do norte europeu na Alta Idade Média.

O Cristianismo é uma religião proselitista, ou seja, ela insta seus fiéis a pregar seu evangelho a todos os povos. Em sua carta à comunidade de Corinto, no século I, Paulo de Tarso foi incisivo: “Ai de mim se eu não anunciar o evangelho”. Em países como a Dinamarca e a Noruega, porém, o Cristianismo só chegou por volta do século X, e de uma forma diferente da maioria dos outros países da Europa.

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Edição número 1430
de maio de 2024
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É o que explica o professor Lukas Gabriel Grzybowski (Departamento de História), que coordena o projeto de pesquisa intitulado “A percepção da mudança religiosa: missão, conversão e cristianização no norte da Europa e a formação da religião cristã”. O recorte da pesquisa abrange os países escandinavos (Dinamarca, Noruega e Suécia), situados na península que os antigos romanos chamavam de Scania; além de Finlândia, Islândia, Groenlândia, Ilhas Faroé e Arquipélado de Äland, ou seja, de toda a região nórdica (norte europeu). Quanto ao recorte temporal, ele vai do século IX ao XI.

A pesquisa investiga fontes historiográficas (literárias ou não) e hagiográficas (histórias de santos), além de outros gêneros textuais, e realiza uma análise e reflexões a partir da “Vorstellungseschichte”, conceito desenvolvido pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) que pode ser entendido como “representação”, dentro do contexto da História dos Conceitos, ou História das Ideias. De acordo com o professor Lukas, já foi um (saudável) desafio aplicar Schopenhauer neste estudo.

Medievalista, e Doutor em História pela Universidade de Hamburgo (Alemanha, 2014), há quase 10 anos o professor se aprofunda nas narrativas do norte europeu, quando não havia textos teóricos, mas outros, que expressavam os anseios e perspectivas da época. Exemplo são as sagas islandesas. Apesar de os autores serem camponeses, eles eram – diferente do resto da Europa – notadamente letrados e cultos. Tais textos são uma mostra da mentalidade subjetiva daqueles povos, que se viam como partícipes da História. Dada a variedade de tipos de textos, a pesquisa se torna interdisciplinar, tangenciando, por exemplo, a Literatura, Teologia e as Ciências Jurídicas.

O pesquisador cita, como exemplo, o cronista medieval alemão chamado Adam de Bremen, que escreveu a História do Arcebispado de Hamburgo-Bremen, no século XI, em quatro volumes. Sua obra inspirou e guiou missionários cristãos, e ainda foi a primeira a mencionar uma terra onde hoje é o Canadá. Por tudo isso, é uma das principais fontes sobre o período.

“Entre os vários modelos de missão cristã, nos países nórdicos houve uma construção histórica. Lá foi diferente”, afirma o professor Lucas Grzybowski.

Fontes Nórdicas

“Não podemos procurar apenas fontes latinas, pois existem muitas fontes nórdicas, como sagas, crônicas, e anais”, destaca Lukas. E o período selecionado contempla os primeiros contatos dos nórdicos com os europeus continentais, passando de um mundo viking (em 793) até o emblemático ano de 1066, quando William, o Conquistador, invadiu a Inglaterra vindo da França e instalou a dinastia normanda, no trono até hoje. Foi a última vez, aliás, que a Inglaterra foi invadida com sucesso. Já a primeira Arquidiocese da Escandinávia foi criada em 1104.

Muitas obras em latim falam da chegada dos missionários cristãos aos territórios vikings. Mas as obras nórdicas, explica Lukas, são diferentes: nelas predominam uma narrativa de povos já cristianizados, que veem o passado exatamente como diz o nome – já foi. O tempo pré-cristão é visto como uma espécie de “infância” da sociedade, que amadureceu e se tornou melhor após a conversão ao Cristianismo. Não há recriminação, apenas uma sensação de que era muito mais acertado ser cristão. E mais: como sujeitos de sua História, foram os nórdicos que livremente optaram pela nova religião. Como diz o professor Lukas, eles mesmo decidiram se “autocristianizar”, pois viram seu país como uma espécie de “terra prometida”.

Tais sentimentos são encontrados nas sagas islandesas (prosa), que falam de reis, bispos e santos, assim como na chamada “poesia escáldica”, uma expressão literária cortesã da Noruega e Islândia cantada ou declamada. Outras expressões são as “eddas” – coleções de poemas (ou prosas) em nórdico antigo que narram histórias mitológicas e de heróis. E ainda existem outras fontes, como missais e leis da época.

O que se destaca na análise das fontes é, portanto, que se trata de uma literatura escrita por cristãos que entendem que sua nova religião lhe foi favorável. Apesar de um eventual olhar para o passado (pré-cristão), os textos são marcados por um léxico ou ideário cristão. Além disso, textos anônimos parecem apontar para uma autoria clerical. O Cristianismo também colaborou para fixar na escrita boa parte da tradição oral. “Entre os vários modelos de missão cristã, nos países nórdicos houve uma construção histórica. Lá foi diferente”, relata Lukas.

Njall, O Queimado

Uma saga importante que ilustra este cenário é a Saga de Njall (islandesa), de autoria anônima, escrita já no século XIII e lançada em tradução inédita no Brasil em fevereiro deste ano por um clube de assinaturas literário. O professor Lukas conhece o tradutor e conta que a história fala de Niall, um herói, e seu conflito com amigos de outras famílias importantes, justamente no período de cristianização do país. No fim, é exatamente a conversão que conduz à paz.

Reprodução.

Projeção

A extensa produção científica do professor Lukas dá uma ideia da projeção que seus estudos vêm obtendo. Além dos artigos, capítulos e livros publicados, no Brasil e fora, o coordenador do projeto está em tratativas com duas instituições europeias para uma parceria: as Universidades de Münster (Alemanha) e Katowice (Polônia), para desenvolver ações de ensino e intercâmbio. As parcerias incluem investimentos financeiros, via governo estadual (Fundação Araucária). Atualmente, o projeto já conta com a participação de um professor alemão.

Também integram o projeto orientandos do professor Lukas e outros estudantes, dentro de um Grupo de Estudos que se reúne semanalmente. Dos 10 participantes do Grupo, cinco estão no projeto, todos de graduação. Há estudantes bolsistas de Iniciação Científica e Iniciação Científica Júnior (graduação) e de Mestrado (Capes). Um bolsista do CNPq desenvolve seu Mestrado na Islândia atualmente.

O projeto já rendeu apresentações em eventos científicos e entrevistas, não apenas no meio acadêmico, mas, por exemplo, em um canal do You Tube. O professor também oferece uma disciplina especial ligada ao tema, aberta a todos os interessados. E o projeto está nas redes sociais, como no Instagram: @lem_medieval .

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