Projeto analisa debates políticos na esfera pública

Projeto analisa debates políticos na esfera pública

Pesquisa que começou com a orientação de um TCC questiona o próprio conceito de ‘debate’ em tempos de comunicação virtual.

Com dois pós-Doutorados (Lisboa- Londres e Berlim) e mais de duas décadas de trajetória de pesquisadora na Ciência Política, a professora Raquel Kritsch (Departamento de Ciências Sociais) coordena um projeto de pesquisa interinstitucional contemplado com Bolsa Produtividade do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Intitulado “Estado, cidadania e democracia: rumo à nova era da política digital? Problemas, tensões e aporias da Teoria Política contemporânea”, o projeto teve início em março do ano passado e dá sequência a um anterior, encerrado no final de 2022. De acordo com a coordenadora, o projeto se encaixa em três dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Organização das Nações Unidas: 4 (Educação de qualidade), 5 (Igualdade de Gênero) e 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes).

Segundo a professora, tudo começou mesmo na década passada, ao orientar um Trabalho de Conclusão de Curso de Ciências Sociais, passando pela coorientação de um Mestrado em 2019. A pesquisadora começou, desde o TCC do aluno, a se aprofundar dentro da Teoria Política, no estudo da chamada “esfera pública”. Nas sociedades democráticas contemporâneas, a esfera pública pode ser entendida como uma estrutura mediadora entre o Estado e a sociedade civil, um “espaço” onde os temas públicos são debatidos pela sociedade, que a partir daí toma decisões que afetam a ela mesma, seja no campo da ética, político, jurídico ou outros. Por isso, a comunicação é elemento extremamente importante neste processo.

Mas de saída o projeto já indaga: estes debates continuam acontecendo? Mudaram? Para Raquel Kritsch, não existe mais um “fórum público” onde as ideias são expostas e discutidas de modo compartilhado. Embora a globalização e as novas tecnologias tenham prometido total interação, a “ágora” (antiga praça grega onde os debates públicos ocorriam) atualmente é digital, está nos aplicativos de mensagens; mas ao invés de promoverem amplos debates, promovem exclusão, ou o famoso “cancelamento”.

“O confronto público é cada vez mais difícil, a tendência é criar ‘rincões’ habitados apenas pelas pessoas que pensam de modo similar. Há espaços públicos, mas não são necessariamente compartilhados, nem expõem igualmente a todos. O algoritmo ‘customiza’ as informações e cria ‘filtros-bolhas’”, argumenta. Para ela, o algoritmo é ótimo quando alguém procura um item específico para comprar. Mas para um debate de grandes questões sociopolíticas, é desfavorável.

Tudo isso se torna um processo ainda mais complexo se forem levados em conta aspectos econômicos, como o oligopólio da produção de tecnologias de comunicação e informação (incluindo as máquinas algorítmicas).

Questões

O projeto aborda duas grandes questões, das quais a primeira foi respondida ainda no projeto anterior, mas logicamente o conhecimento produzido é herdado pelo novo. O ponto eram os limites da relação entre Estado e o monopólio da violência e da justiça. Historicamente, o Estado detém estes monopólios desde a Idade Moderna. Como bem lembra a professora, ninguém mais pode resolver um conflito com um duelo de espadas ou de mosquete.

Por outro lado, porém, o Estado pode ser bastante injusto na administração de sua “justiça” e é capaz de praticar vários tipos de violência, não apenas física, exorbitando suas funções. “Sabemos que o Estado e seus agentes podem torturar e/ou cruzar limites”, ilustra Raquel. Ainda assim, a professora reconhece que tem havido avanços significativos no debate e consequente positivação de direitos e movimentos, como o feminismo e o antirracismo. “Conseguimos mostrar ao Estado coisas que consideramos ruins e/ou excludentes e não queremos mais”, acrescenta. E lembra: “Recentemente a democracia brasileira levou um susto”, e isso serviu para deixar todos ainda mais vigilantes.

Claro que é um longo e difícil processo. Para a pesquisadora, muitos temas precisam de um tempo de maturação. Entre a “ciência de ponta” e a (outra) “ponta onde está a população com menor escolaridade”, existe uma enorme distância, que pode ser reduzida justamente com os debates, com o uso da comunicação e dos espaços públicos, bem como por meio da educação. Não significa que é simples: “Especialmente nas Ciências Humanas, há muito dissenso. Por isso é muito complexo”, expõe Raquel. Mas ela é otimista: “Transposições são difíceis, mas não impossíveis. As ações de extensão estão aí justamente para incrementar esses movimentos. E em alguns pontos, avançamos anos-luz, como no combate ao racismo ou ao sexismo”, comenta.

Engrenagens

A segunda grande questão envolve levantar e analisar as tensões, dilemas, desafios e aporias (impasses, dúvidas, incertezas) postos pela nova era da política digital, e perguntar: até que ponto a “engrenagem” do tão propalado Estado Democrático de Direito poderia estar dando sinais de desgaste ou mesmo sendo desmontada.

Para a professora, os sinais parecem bem claros: estas engrenagens estão desgastadas. É preciso observar de vários ângulos, como o “arquitetônico”, no sentido estrutural, e indagar se este “EDD” ainda está aí. “Modelos de dominação se esgotam (caso dos impérios, das poleis gregas, etc)”, sintetiza Raquel.

“O confronto público é cada vez mais difícil, a tendência é criar ‘rincões’ habitados apenas pelas pessoas que pensam de modo similar”, argumenta a professora Raquel.

Participantes

O projeto conta com pesquisadores de várias instituições de quatro regiões do Brasil, como as Universidades Estadual de Maringá, USP, Federal do Piauí (formada na UEL), Universidade de Brasília, e ainda os que estão no exterior, como França e Alemanha. São mestrandos ou doutorandos que se somam à professora e aos alunos de Iniciação Científica (graduação), num total de quase 20 participantes. Seus estudos têm gerado publicações e participações em eventos científicos, como os da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais) e da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política). Neles, a coordenadora do projeto abordou conceitos como política digital, algoritmos e democracia. Existe ainda a ideia de criar redes sociais para ampliar a disseminação do conhecimento produzido e propiciar debates.

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