Mãe vítima de feminicídio no Brasil deixa, em média, três órfãos menores de idade, diz estudo
Mãe vítima de feminicídio no Brasil deixa, em média, três órfãos menores de idade, diz estudo
Estatísticas evidenciam que casos de feminicídio consumados deixaram mais de quatro mil crianças e adolescentes órfãos de mãe no país.O Dia das Mães, comemorado em todo o País neste domingo (14), é a segunda data mais importante do ano para o comércio, sendo retratado em quase 100% dos casos apenas por meio de associações sentimentais positivas. Com o objetivo de render homenagens às cuidadoras do lar e da família e aumentar o consumo de bens e serviços, não se costuma abordar uma série de demandas, dentre elas as das vítimas de violência doméstica, que – em sua maioria – também são mães no Brasil. Mas, a associação entre o Dia das Mães e o fenômeno da violência doméstica encontra respaldo em aspectos perturbadores. Os casos de feminicídio consumados deixaram mais de quatro mil crianças e adolescentes órfãos no País somente no ano de 2020. A maioria das agressões, ainda, ocorreu na presença dos filhos das vítimas.
De acordo com o estudo “Feminicídios Julgados na Comarca de Londrina nos anos de 2021 e 2022”, realizado pelo Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem) com o apoio do Neias – Observatório de Feminicídios Londrina, que também reúne dados de todo o País, a presença dos filhos durante o cometimento dos crimes foi identificada em quase a metade (11) dos 23 casos levados ao Tribunal do Júri no município neste período. Dados publicados pela Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), por exemplo, apontam que a presença dos filhos durante as agressões foi confirmada por 61% das vítimas de violência naquele estado em 2020.
Ser agredida pelo marido na frente do filho do casal, João Vitor, foi uma dura realidade vivida pela cuidadora de idosos Maria Goreti da Silva. Durante o convívio com o agressor, que era usuário recorrente de álcool e crack e possuía diversas passagens pela polícia por furto e associação para o tráfico de drogas, Maria Goreti chegou a ser esfaqueada e quase perdeu a vida. Ela também conta que, mesmo tendo solicitado medidas protetivas à Justiça, só conseguiu se libertar da relação ao receber ajuda de uma família que intercedeu para a internação do criminoso em uma clínica.
“Ele ameaçava que ia tirar o meu filho. O João sempre via o que estava acontecendo comigo, ele era bem pequeno. Ele chegava drogado e me batia. O João queria me ajudar e não conseguia. Um dia ele cresceu e falou ‘você não vai bater mais na minha mãe’. Foi quando eu pensei que iria acontecer uma tragédia aqui em casa”, lamenta.
“Uma legião de órfãos“
As consequências do fenômeno da violência feminicida, explica a coordenadora do estudo, docente do Departamento de Ciências Sociais (CLCH) da UEL e integrante do Neias, Silvana Mariano, representam danos sociais que vão muito além da violência contra as vítimas. Para se ter uma ideia, os dados reunidos no estudo apontam que o País registrou 1.355 feminicídios em 2020, média de 3,7 casos por dia, sendo que 59% destas mulheres eram mães, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Já o estudo “Perfil das mulheres vítimas de homicídio no Brasil”, elaborado pelo Ministério da Saúde em parceria com a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, diz que 61,5% das vítimas de homicídio entre 2010 e 2015 eram mães. “Estima-se que, em média, uma mulher assassinada deixa três filhos menores de idade. Isso significa que, apenas em 2020, cerca de 4.065 crianças brasileiras perderam suas mães para a violência de gênero”, aponta Silvana.
Corroborando com este dado, o levantamento realizado pela Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCcrim) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostra que a maioria das crianças que ficam órfãs a partir de feminicídio é menor de idade. Dentre os casos analisados neste levantamento, 66% das vítimas deixaram filhos menores de 18 anos, sendo que 58% destes tinham menos de 12 anos de idade quando perderam suas mães. No caso de Londrina, 16 das 23 vítimas cujos julgamentos ocorreram em 2021 e 2022 tinham filhos com menos de 18 anos.
“Você tem uma legião dos órfãos e órfãs de feminicídio. Há, ainda, o próprio problema dos traumas de presenciar o ato da violência. Também há o risco de que presenciar o ato seja um mecanismo de reprodução da violência, naturalizando algumas formas de interação social e resolução de conflitos. É muito ruim”, avalia a professora Silvana Mariano. Também foram responsáveis pelo estudo as pesquisadoras Luciene Oliveira Vizzotto Zanetti e Kamila Klasmann.
Questionada sobre este aspecto, Maria Goreti conta que, mesmo tendo sofrido tantas agressões, tomou o cuidado de não colocar o filho contra o próprio pai. “O fundamental foi eu nunca pegar e dizer que o pai era isso e aquilo. Eu acho que isso iria revoltar ele. E eu sempre estava ali, ele via eu lutando com a vida. Eu dizia, ‘meu filho precisa estudar, precisa trabalhar. E eu ainda tinha o meu escape que era o trabalho e ele via o pai dele lá, drogado. Então, eu levava ele para o trabalho comigo, estávamos sempre juntos. Isso foi muito bom”, conta.
Prevenção, redução de danos e punição
Dos três pilares que devem dar sustentação ao enfrentamento à violência contra a mulher – prevenção, redução de danos e punição -, o que “melhor caminha no Brasil é a punição”, segundo Silvana Mariano. O que é fundamental, mas não é o suficiente.
No caso de Londrina, nos 17 casos julgados e qualificados como feminicídio, 12 resultaram na condenação dos réus, sendo a menor pena seis anos de prisão em um feminicídio tentado e, a maior, 33 anos em um crime consumado. Nos outros cinco casos julgados pela comarca a qualificadora do feminicídio, não foi considerada uma vez que os fatos remontam ao período anterior à promulgação da Lei do Feminicídio, que é de 2015. Em média, a diferença entre as penas dos casos de tentativa e os casos consumados em Londrina foi de aproximadamente sete anos, aponta o estudo.
Um aspecto ainda considerado “polêmico” nesta discussão, aponta a professora, é a busca pela redução da pena a partir de uma confissão do réu da autoria do crime. “O agressor atirou seis vezes contra essa mulher mas diz que não teve a intenção de tirar a sua vida”, ironiza a professora.
“Os advogados de defesa buscam isso e têm êxito. Mas, há promotores que acham isso muito benéfico para o réu, que o juiz poderia ser mais duro e não atender plenamente o tal atenuante de uma confissão feita nesses moldes. Isso é algo que faz diferença na dosimetria da pena e, aqui em Londrina, nesse ponto, os juízes têm sido bastante benéficos com os réus”, exemplifica, lembrando, também, das recorrentes tentativas de se atenuar a pena a partir da descaracterização da qualificadora de feminicídio e da substituição pela tese de lesão corporal.
Já no que concerne à prevenção, ela lamenta que o País esteja lidando com os efeitos de um clima social em que considera ter havido um esvaziamento do aspecto político da defesa da dignidade das mulheres no ambiente familiar. Para a professora, o Brasil criou um “tabu” em torno das discussões sobre gênero nas escolas, o que inviabiliza a produção de uma percepção de que homens e mulheres são dignos dos mesmos direitos. “Ainda há este efeito danoso que para professoras e professores em que gênero tornou-se, a própria palavra, banida no espaço escolar. Então, precisamos reconstruir isso e pensar desde as políticas educacionais que tenham a perspectiva de gênero, que é o que vai produzir em nós a percepção de que homens e mulheres são dignos de direitos humanos igualmente e a mulher não é posse do homem, não é objeto”, avalia.
Mesmo com seu agressor estando preso em uma penitenciária, o medo ainda acompanha a cuidadora de idosos Maria Goreti da Silva. Mas, ela não pensa mais em fugir. Na verdade, busca através da sua religiosidade encontrar forças para continuar criando o filho João Vitor, que está concluindo o Ensino Médio e trabalha como menor aprendiz em uma empresa de Londrina. Além dele, Maria Goreti é mãe de outras três crianças que, assim como João Vitor, foram adotadas por ela ainda nos primeiros anos de vida. “Calebe tem dois anos, Lavínia, seis, e Alexia, dez”, conta, orgulhosa. Para este Dia das Mães, ela diz que seu maior presente é ver os filhos crescendo com saúde e buscando condições de realizarem seus sonhos.
“A mãe mostrou para ele que temos que dar valor na vida e lutar. O meu maior (filho), o meu sonho é que ele consiga realizar todos os sonhos dele. Eu também fiz de tudo, escola, cursos e projetos, nunca deixei ele na rua sozinho. Quando ele arrumava uma amizade estranha, eu falava ‘olha filho, o que ele esse menino tá fazendo não é certo’. Então, eu acredito que eu o meu filho vai ser um menino bom. O sofrimento que ele passou foi transferido para as coisas boas na vida dele”, diz.