Trabalhar para quê?

Trabalhar para quê?

Pesquisa analisa expressões da resistência ao trabalho na sociedade contemporânea, que desafiam paradigmas do trabalho dos últimos séculos.

O trabalho dignifica o homem. Frases como essa, proferida há um século por um dos criadores da sociologia, Max Weber, são expressões contraditórias para uma sociedade que está em mudança no século XXI, quando há baixa oferta de empregos formais, formas de uberização do trabalho cada vez mais excruciantes e crises contínuas no capitalismo. Diante disso, uma multidão de jovens adultos se questiona, diante de tantas crises, baixos salários e poucas oportunidades: trabalhar para quê? 

É o que aponta a pesquisa “Expressões da Resistência ao Trabalho”, coordenada pelo professor do Departamento de Psicologia Social e Institucional (CCB) Paulo Roberto de Carvalho. Ele se debruça a respeito das formas de resistência à cultura do trabalho, muito própria de um tempo histórico específico em que a socialização pelo trabalho, aponta o professor, mostrava-se como uma “saída” para a sociedade. Com o avançar dos séculos XIX e XX, no entanto, essa “saída” se mostrou uma encruzilhada e trouxe muito mais questões do que respostas.

E quais são esses processos de resistência ao trabalho, se trabalhar é, ainda, a única forma de conseguir se inserir no mundo do consumo? Carvalho avalia, por meio de um diagnóstico do tempo histórico atual, que esse é um processo “transcultural”, que se evidencia, também, nas sociedades orientais. “Há exemplos de resistência ao trabalho na sociedade chinesa. Hoje, vemos que a sociedade ocidental, principalmente, oferece o trabalho como um way of life, com toda uma cultura empresarial”, avalia. Esse processo de socialização pelo trabalho ocorreu anteriormente, mas, hoje, mostra sinais de esgotamento claros.

“Hoje, vemos que a sociedade ocidental, principalmente, oferece o trabalho como um ‘way of life’, com toda uma cultura empresarial”, avalia Carvalho (Willian Fusaro/Agência UEL).

Essa “cultura”, ratifica, está tanto no “trabalhar” quanto no “consumir”, e começa bem antes do trabalho propriamente dito em nossas vidas. “A escola, para (Michel) Foucault, já se insere como um ambiente de preparação para o trabalho. Fora, na sociedade, temos um processo de preparação infinita para trabalhar”. Paul Lafargue, revolucionário franco-cubano e genro de Karl Marx, autor de “Direito à Preguiça”; Henry David Thoreau, autor e poeta naturalista estadunidense, criador do princípio da Desobediência Civil; e o filósofo alemão Friedrich Nietzsche também estão entre os autores utilizados na pesquisa. Todos eles, segundo o professor, reconhecem e salientam o aspecto “dolorido” do trabalho.

Trabalhar para quem?

Com o advento da modernidade, a ideia de que o trabalho resolveria as questões sociais era comum a “capitalistas e socialistas”. Por um lado, “se trabalharmos muito, vamos conseguir”, afirma o professor; por outro, devemos trabalhar equitativamente, porém nos guiando pelo mesmo paradigma produtivista moderno: trabalhar para um propósito.

O Quiet quitting é uma tendência nova que consiste em fazer o mínimo no ambiente de trabalho (IStock)

Hoje, mesmo com o avanço da tecnologia e o desaparecimento de muitos postos de trabalho formais (empregos), até mesmo os empregos restantes continuam sob alvo de críticas contumazes das novas gerações. Uma das formas de resistência mais comentadas, avalia Carvalho, é o Quiet quitting, chamado de “demissão silenciosa”.

Ao contrário do que o termo sugere, não se trata de jogar tudo para o alto e ‘demitir o patrão”. Os trabalhadores adeptos dessa tendência, surgida com força nos últimos anos, principalmente nos EUA, resolvem fazer o mínimo possível para permanecer nos seus empregos. Não vestem a camisa. Não ficam até mais tarde. Não trocam o que chamam de “vida social” – lazer, família, amigos – por trabalho, como outras gerações passadas faziam e eram ensinadas a fazer.

Esse modo de comportamento na vida profissional, segundo o professor, pode trazer alguns custos de socialização para o trabalhador em seu ambiente profissional. Isso porque, como atualmente é cultural das empresas oferecer subsídios e demais “atrativos” para o empregado – salas de jogos, festas coletivas, gincanas, atividades motivacionais diversas -, abrir mão disso pode dar a impressão de que o quiet quitter está sozinho em meio à multidão de jovens “motivados” das start ups. Outras tendências, cada vez mais em evidência, são “formas de captura” das necessidades sociais dos trabalhadores: auxílio-creche, planos de saúde e odontológico, entre outras.

Outro exemplo é o Movimento Simplicidade Voluntária, também surgido nos Estados Unidos e que objetiva mais do que trabalhar de outra forma para sobreviver: é um movimento de reavaliação do “consumismo” nas relações sociais. Carvalho explica que, nos Estados Unidos, as tendências costumam ter mais força por conta da própria lógica do trabalho na vida dos estadunidenses. “Nos EUA, os trabalhadores têm muitas ocupações durante a vida, paralelas. Com a promessa de que se ganha mais assim do que com direitos sociais, previdência etc.” salientou o pesquisador. Ou seja, a ideia de que é possível trabalhar e viver “mais para si”, do que para um sistema socioeconômico, ainda que seja inviável não fazê-lo.

Movimento Simplicidade Voluntária, em ascensão nos EUA, revê o consumo nas relações sociais, no trabalho e em todas as esferas da vida (IStock).

Trabalhar por quê?

Um trabalhador que sai de casa cedo o faz não só por salário, mas também por motivação. Ou, segundo Carvalho, pelo desejo. O que desejam os aspirantes a uma vida menos organizada pela lógica do trabalho? A pandemia de Covid-19, segundo o pesquisador, foi preponderante para trazer à tona outros olhares, inclusive literalmente, sobre trabalhar e consumir. O trabalhador passou a ver, ficando em casa o tempo todo devido à necessidade de isolamento social, que aquele lugar merecia ser olhado, cuidado, experienciado de outra forma. A sua forma de consumir, por consequência, também mudou.

“Ainda hoje”, lembra Carvalho, “há muitos jovens que pensam duas vezes antes de sair para a balada, pois preferem algo mais caseiro, menos tumultuado”. Essa constatação, avalia, é um problema para o capitalismo, pois ele “quer que as pessoas saiam para a rua”, embora o consumo possa se dar também em casa. 

Utilizando o conceito de “máquina desejante”, tratado pelos filósofos Félix Guattari e Gilles Deleuze, Carvalho lembra como o desejo está presente nas atividades mais corriqueiras do trabalho. É possível encontrar, como dizem os autores franceses, “prazer e desejo” até no riso do burocrata que acaricia a caneta enquanto remexe processos nas repartições. “O desejo está presente no fluxo cotidiano. A vida profissional é objeto de fluxo libidinal, as pessoas gozam através de suas atividades profissionais”, ratifica Cavalho. Quando não há sentido e em que trabalhar, o ato torna-se somente uma repetição enfadonha de processos, sem propósito. “O desejo tem essa natureza múltipla. Quando não há desejo, o que há no trabalho dessas pessoas?”

Um termo bastante recorrente no Brasil nos últimos anos, a população “nem-nem” é uma expressão típica, avalia o pesquisador da UEL, da resistência ao trabalho. São contingentes muito grandes – segundo dados da OCDE, 35,9% dos jovens de 18 a 24 anos não trabalha e nem estuda –  que se “demitiram” de um aspecto gigantesco da existência. “Esses jovens, os ‘nem-nem’, colocam o desejo em evidência”.

A pesquisa utiliza de bancos estatísticos e de dados de domínio público, dispostos em plataformas online. Até agora, rendeu uma dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, com o título “O vagabundear nas sociedades capitalistas”, defendida por Orlando Amaro Junior e orientada pela professora Sonia Mansano. Uma das justificativas da pesquisa é, aliás, sua universalidade. “(Vagabundo) é o xingamento número 1 em todo o mundo”, encerra Carvalho, aos risos.

Leia também