Pesquisa analisa trajetória de egressos indígenas gestores de políticas sociais públicas
Pesquisa analisa trajetória de egressos indígenas gestores de políticas sociais públicas
Projeto reúne registros de contratação dos indígenas. Dados darão pistas sobre as dificuldades e desafios dos percursos profissionaisApesar da presença indígena na universidade ser um fenômeno histórico recente, projetos de pesquisa que abordam a trajetória desses estudantes durante o ensino superior já foram realizados por diversos pesquisadores no Brasil e na América Latina. Entretanto, um projeto voltado à análise das trajetórias profissionais dos egressos indígenas, é algo um tanto quanto inédito. E se o recorte desse público-alvo for ainda mais restrito a apenas os indígenas que ocupam/ocuparam cargos de gestão de políticas sociais em organizações governamentais, provavelmente o ineditismo torna-se incontestável. Esse assunto é o tema do projeto “As trajetórias dos profissionais indígenas gestores de políticas sociais públicas e os desafios na formação e na atuação destes sujeitos e a relação com suas comunidades de pertencimento”, de autoria do professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Wagner Roberto do Amaral.
Um tema tão singular traz várias indagações inquietantes que orbitam os objetivos do projeto, tais como: Quais são as expectativas das comunidades indígenas para o retorno desses estudantes? Quais são as relações dos profissionais indígenas com as instituições que os contratam e quais são elas? Como tem sido a atuação desses indígenas como gestores? E ainda uma pergunta-chave voltada para as universidades no que diz respeito à qualidade e às peculiaridades da formação acadêmica com relação a esse tipo de estudante: Que profissional indígena exatamente se quer formar? “Então esse assunto abre um leque imenso de possibilidades de questões e proposições para tentarmos refletir e construirmos respostas. Essa é a intenção do projeto”, afirma o professor Wagner Amaral.
Serão estudadas as trajetórias de egressos das Universidades Estaduais do Paraná, um recorte nada aleatório, pois o estado foi pioneiro nas ações afirmativas para o ingresso de indígenas em cursos superiores no Brasil com a criação do Vestibular dos Povos Indígenas em 2001 e com o ingresso dos primeiros indígenas em universidades públicas brasileiras por essa via de acesso específica em 2002. As Leis estaduais que reservam aos indígenas paranaenses vagas suplementares e uma política de ingresso específico nas universidades do estado são as 13.134/2001 e 14.995/2006. Dessa forma a probabilidade de se encontrar indígenas com maior tempo de trabalho em cargos de gestão está nessa população dos egressos das instituições estaduais de ensino superior do Paraná, onde há uma política sistêmica permanente, de maior longevidade no cenário nacional.
O estudo parte de uma base de dados já coletada pelo professor Wagner Amaral em projetos anteriores coordenados por ele, em sua tese de doutorado e também através de fontes como a Comissão Universidade para os Indígenas (CUIA) do Paraná. Com esses dados, foi possível identificar, por exemplo, que até o ano de 2021, 65% dos egressos são formados na área da educação e 65% são mulheres. Esses dados serão complementados e ampliados com o atual projeto. Para isso, serão aplicados formulários que consigam traçar um perfil mais detalhado dos egressos, agregar dados que ampliem a identificação desses sujeitos e, num segundo momento, ir a campo para a realização de entrevistas com roteiro semiestruturado e grupos focais por áreas de formação tais como saúde, educação, ciências sociais aplicadas etc. O projeto também pretende colher registros de contratação e desligamento dos indígenas nas instituições em que trabalharam. Os dados poderão dar pistas sobre as dificuldades e fragilidades dos percursos profissionais, o que pode apontar insuficiências na formação acadêmica, bem como sobre as potencialidades e avanços no trabalho por eles realizados.
Aliás, qualificar o percurso formativo dos indígenas nas universidades é um dos objetivos do projeto. Com essa análise, pretende-se contribuir para o aperfeiçoamento, não só da vida acadêmica do indígena, mas também para o processo de constituição das políticas públicas de educação superior voltadas aos povos indígenas. “A partir dos relatos, esperamos que os aspectos identificados possam repercutir na formação acadêmica e que possamos devolver esse conhecimento para as universidades do Paraná indicando, por exemplo, possíveis situações de racismo, ou possíveis situações de invisibilidade sobre a questão indígena nos currículos”, comenta Wagner Amaral. Sobre a questão da invisibilidade, o professor explica que há a necessidade de inserir no debate em sala de aula a discussão sobre as perspectivas profissionais dos indígenas em suas comunidades e na própria sociedade.
“É fundamental, por exemplo, que o estágio do estudante indígena seja prioritariamente numa escola indígena, se essa for a vontade dele, e que se criem ou se ampliem os eventos acadêmicos para que as lideranças indígenas, os sábios indígenas e os caciques, venham para a Universidade opinar e participar. Construir essa visibilidade é muito importante para o enfrentamento do racismo e para socializar outras formas de conhecimento. A presença indígena tem nos ensinado que nossa tarefa fundamental é a de interculturalizar a universidade”, ilustra o coordenador do projeto.
O retorno para as comunidades
Segundo o professor Wagner Amaral, no levantamento realizado, a maioria dos egressos manifesta sua intenção em retornar para as suas comunidades de origem ou de pertencimento. Nas terras indígenas, as oportunidades de trabalho como gestores são majoritariamente nas áreas da saúde e, principalmente, na educação, pois a escola indígena é estadualizada no estado, o que faz da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED-PR) a maior contratante desses profissionais.
O que vem sendo problematizado sobre esse retorno é que nem todos conseguem vagas nas escolas ou nas unidades de saúde nas comunidades indígenas. Há ainda que considerar uma peculiaridade na seleção dos indígenas para os postos de trabalho. Após a realização dos Processos Seletivos Simplificados, os aprovados ainda passam pelo aval das lideranças da comunidade. Esse aval é necessário como uma forma de controle social, para garantir, por exemplo, que na comunidade não trabalhem profissionais indígenas não comprometidos com a cultura e com as lutas do seu povo, ou mesmo profissionais não indígenas que tenham condutas racistas.
Outro aspecto levantado pelo professor se refere ao progressivo número de egressos graduados em determinados cursos gerando uma oferta significativa de profissionais sem que haja vagas suficientes para contratação em instituições e serviços localizados nos territórios indígenas. “Começamos a perceber que surge uma concorrência entre os próprios profissionais indígenas para ocuparem vagas de trabalho em suas próprias comunidades de pertencimento”, afirma o professor Wagner.
Outra característica do retorno dos profissionais indígenas para sua comunidade diz respeito à íntima ligação que ele tem com ela, impactando nos processos de trabalho, conforme explica Wagner Amaral: “O diretor de uma escola indígena mora na comunidade, então ele não tem horário de expediente convencional, a demanda é permanente. Ele precisa resolver os problemas dos alunos em qualquer dia ou horário. É completamente diferente da jornada de trabalho ou do envolvimento de um gestor não indígena”.

Segundo o professor Wagner Amaral, o projeto tem uma conexão grande com as lutas indígenas no Brasil, especialmente no que diz respeito à ampliação do acesso desses profissionais nas instituições públicas do país. “Eu espero que possamos também ter alguma incidência nas instituições que desenvolvem as políticas sociais. Porque a chegada dos profissionais indígenas nas instituições e em cargos de gestão é algo novo. Esses profissionais vão se adaptar facilmente à burocracia? Vão ter propostas inovadoras para mudar as instituições? Tentar responder a essas questões é o nosso papel”, sintetiza o professor.
Wagner Amaral destaca ainda a recente criação do Ministério dos Povos Indígenas, sob coordenação da Ministra Sonia Guajajara e pela presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) pela Joenia Wapichana, primeira indígena a coordenar esse órgão federal. Tais órgãos passam a ser constituídos por indígenas ocupando cargos de gestão em seu primeiro e segundo escalão, sendo um fenômeno histórico no Brasil. Também em esferas municipais e estaduais, os indígenas passam a ocupar espaços de gestão de políticas sociais em funções de coordenação, gerencia, chefia, direção, assumindo desafios importantes no contexto da história dos povos indígenas no país.
Outro fenômeno importante destacado pelo Professor Wagner se refere à presença indígena na pós-graduação. São muitos egressos indígenas da graduação que já vem se preparando para ingressarem em programas de pós-graduação no Brasil. A UEL, por exemplo, possui cotas para indígenas em todos os programas de pós-graduação desde o ano de 2022, criando a possibilidade da formação de pesquisadores e docentes indígenas na educação superior. “Emerge a tarefa da universidade em criar novos espaços de acolhimento e de diálogos interculturais com intelectuais e pesquisadores indígenas que passam a ocupar a pós-graduação em diferentes áreas do conhecimento. São novas epistemologias, novos conhecimentos que passam a circular pela universidade e que podem avançar na afirmação e no reconhecimento dos povos indígenas além da superação do racismo que ainda persiste no ambiente acadêmico”, expõe Wagner.
Wagner Roberto do Amaral possui doutorado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2010) e pós-doutorado em Estudos Interculturais pela Universidad Veracruzana (México) e em Educação Superior para Povos Indígenas na América Latina pela Universidad Nacional Tres de Febrero (Argentina). Participou da regulamentação e avaliação da política de ingresso e permanência de indígenas nas universidades estaduais do Paraná desde 2001 e da organização dos Vestibulares dos Povos Indígenas desde a sua criação. Atualmente, participa da coordenação da Comissão Universidade para os Indígenas (Cuia) da UEL. É também Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq) Educação Superior para Povos Indígenas no Brasil e na América Latina e colaborador na Cátedra UNESCO Educação Superior, Povos Indígenas e Afrodescendentes da América Latina.