A dor além da terceira margem do rio

A dor além da terceira margem do rio

Professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas coordena projeto que estuda a melancolia em obras de diferentes períodos e movimentos estéticos.

Hipócrates (460-377 a.C.), o Pai da Medicina, acreditava que a influência excessiva de Cronos, o tempo (Saturno, na mitologia romana), aumentava a produção de bílis negra no organismo humano, e provocava um estado de desânimo profundo e doloroso, o desinteresse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a redução da autoestima e uma atração pela morte: a melancolia, um estado muito pior do que aquele que hoje se diagnostica como depressão.

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Edição número 1418
de abril de 2022
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Como expressão humana, a Literatura tem inúmeros exemplos de personagens (e autores) marcados pela melancolia, a tal ponto que chegam a se suicidar. Encontrar tais marcas enunciativas nas narrativas literárias é o objetivo principal do projeto de pesquisa “Uma leitura psicanalítica de algumas personagens melancólicas na Literatura”, coordenado pelo professor Gustavo Javier Figliolo, do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (CLCH).

Este tem sido o objeto de pesquisa do professor desde os anos 90, quando ingressou nas faculdades de Psicologia e Letras, em Buenos Aires – cursos que veio a concluir no Brasil, por ter se mudado para cá. Em seu doutorado em Letras pela UEL, concluído em 2015), defendeu a tese “Horácio Quiroga: luto e melancolia para uma sintaxe da morte”, na qual enfocou os temas de morte e suicídio na obra do autor uruguaio (1878-1937), que também terminou com a própria vida.

O professor Gustavo busca nas narrativas, falas, atitudes e silêncios que apontam para um estado patológico de melancolia. Situações como a perda do objeto de desejo, a ambivalência emocional (amor e ódio) e o narcisismo (sob diferentes manifestações) são exemplos. “Os personagens têm seu ego desestruturado, passam por uma autorrecriminação e acabam sucumbindo, muitas vezes chegando ao suicídio”, explica.

Para iluminar estes estudos, o professor recorre a conceitos da teoria psicanalítica freudiana, como a “pulsão de morte” (em oposição à “pulsão de vida”), ou seja, os impulsos psíquicos que direcionam o indivíduo para uma ou para a outra.

Na Literatura analisada, o pesquisador percebeu que nem sempre o suicídio é um ato instantâneo. Um exemplo é um personagem que se entrega ao álcool, matando-se aos poucos. Mas, quase sempre, a razão da busca pela morte é a fuga da dor.

Obras

Entre outras, o professor destaca algumas obras estudadas. “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa (1908-1967), publicado em 1962 e considerado por parte da crítica como o melhor conto brasileiro. Narrado em primeira pessoa (o filho do protagonista), conta a história de um homem que decide abandonar a família e tudo o mais para viver numa pequena canoa, num grande rio. Naturalmente, sua aparência se desumaniza: os cabelos crescem nada cuidados, as unhas ficam enormes, veste trapos ou fica quase nu, fica queimado de sol e muito magro. Quanto à referida “terceira margem”, ela parece existir apenas na mente do homem. Para a psicanálise, há uma boa quantidade de arquétipos a partir dos quais realizar uma análise: rio, barco etc.

Outra obra mencionada pelo professor Gustavo é “O sonho de um homem ridículo”, conto do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), publicado em 1877. Narra as experiências do protagonista a partir do momento em que conclui que não há mais nada para viver, nada mais tem importância e, assim, decide cometer suicídio. Num sonho, ele se mata mas continua consciente do entorno, e a história vai se desenvolvendo.

“Esvaziamento”, de Clarice Lispector (1920-1977), é outro exemplo. Fala de um amor frustrado, não correspondido, e de dor. Para o pesquisador, trata-se de uma “saudade melancólica”. Diferente da “saudade nostálgica” (daquilo que foi), a melancólica se refere àquilo que não foi, que não chegou a acontecer, não existiu a não ser no desejo.

E, é claro, o escritor Horácio Quiroga não está de fora: 10 contos do uruguaio foram analisados no doutorado e continuam no projeto, como “O travesseiro (ou “Almofada de penas”, de 1907), que narra um casamento sem amor e a morte por uma doença que tanto pode ser entendida por razões físicas (médicas) quanto da alma.

Contextos

Na avaliação do professor Gustavo, o contexto sociopolítico e cultural pode influenciar as marcas enunciativas encontradas nas obras, da mesma forma como as obras influenciam a sociedade. Exemplo está no chamado “Efeito Werther”, referente à onda de suicídios na Alemanha após a publicação do livro “Os sofrimentos do jovem Werther” (1774), de Wolfgang von Goethe (1749-1832).

No Romantismo, explica o pesquisador, a morte era dramática mas tinha seu valor positivo. Era um clímax esperado e valorizado. Já no Realismo, o suicídio era mal visto. Igualmente, havia diferentes perspectivas entre a literatura americana e a europeia ou russa.

E ainda, como no caso de Quiroga, houve outros escritores que também atentaram contra a própria vida, como Ernest Hemingway (1899-1961), Virginia Woolf (1882-1941), Camilo Castelo Branco (1825-1890) e John Berryman (1914-1972).

Produção

De acordo com Gustavo, o projeto já rendeu várias apresentações em eventos científicos, publicações e orientações de Iniciação Científica. A pesquisa conta com participação de alunos de graduação e colaboradores externos das duas áreas, Literatura e Psicologia. E embora o projeto tenha duração prevista até fevereiro de 2024, o professor já tem em mente o próximo, ainda sobre a pulsão da morte na Literatura, mas não mais com a melancolia, e sim com outros impulsos, como a agressividade. Fica na outra margem do rio.

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