“O celular é pior que a geladeira”

“O celular é pior que a geladeira”

A pressão constante por produção, a necessidade de estar conectado, a exigência para ter um juízo sobre tudo, e o enaltecimento das múltiplas tarefas simultâneas são alguns dos ingredientes deste “caldo” que leva à frustração e a doenças.

O filósofo Lucius Annaeus Sêneca, nascido em Córdoba (Espanha), disse certa vez: “A necessidade natural tem seu limite próprio, enquanto as necessidades artificiais e derivadas do mero prazer não conhecem limites”. Considerando que viveu no primeiro século depois de Cristo, é perturbador constatar como suas palavras são atuais.

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Edição número 1426
de dezembro de 2023
Confira a edição completa

É o que se depreende da reflexão da professora Andréa Luísa Bucchile Faggion, do Departamento de Filosofia da UEL. Além de pesquisadora da Filosofia do Direito, em sua trajetória docente e no desenvolvimento da disciplina de Metodologia de Pesquisa, ela detectou certas dificuldades dos discentes do curso e da pós-graduação, como a falta de foco, de disciplina e de organização, o que tornava mais difícil a execução de uma pesquisa, um Trabalho de Conclusão de Curso, um artigo.

Andréa atribui tais problemas a causas mais profundas e sistematizadas, enraizadas na própria estrutural social contemporânea, tanto que não se restringem ao âmbito acadêmico, mas do trabalho e social de maneira geral. “É um problema da época atual. O trabalho não tem fim, não tem mais horário nem local definido. Você pode e deve trabalhar a qualquer hora e qualquer lugar”, exemplifica.

Antes, ela explica, o trabalho seguia um ritmo natural, com um tempo para cada coisa. Na maioria dos casos, as atividades laborais se encerravam ao fim do dia. Porém, a invenção da lâmpada elétrica, por exemplo, possibilitou a criação do turno da noite, seja para as fábricas, comércio, ou escolas. Ou seja, mais oportunidades de produzir, produzir e produzir. O problema, salienta a professora, é que os recursos são finitos, sejam os naturais, ou a capacidade humana, e não conseguem acompanhar tanta demanda. Além disso, tudo perpetua um modelo de relações subalternas e sobrecarga.

Enfim, trabalhar muito se tornou um estilo de vida. Pior: o estilo contaminou outras dimensões da vida social. Assim, as pessoas trabalham até a exaustão; têm mais de um emprego; trabalham, estudam e educam filhos. Tudo para manter um certo status, aqui definido por aquela frase de autoria incerta: “Status é comprar coisas que você não quer com o dinheiro que você não tem a fim de mostrar para gente que você não gosta uma pessoa que você não é”.

Redes sociais

Sob este aspecto, as redes sociais são o reino da aparência. “As pessoas sentem-se na obrigação de reagir a tudo o que veem, têm medo de deixar de ser notado, curtido, comentado. O curioso é que a pessoa pode ter centenas de ‘amigos’ mas a grande maioria nem vai notar se ela deixar de aparecer”, comenta Andréa.

Para a professora, a rede social é uma “tecnologia de cassino” – um lugar que não tem relógio nem paredes, para que a pessoa perca a noção do tempo e fique ali.
Numa realidade como esta, como se pode estabelecer prioridades? “Quem tem dez prioridades não tem nenhuma”, sentencia a professora. Para ela, algum plano ou meta sempre será preterido por outro: carreira, viagem, carro novo, família, casa própria, casamento… é impossível “priorizar” tudo, e tentar só levará à exaustão e talvez a uma doença.

A ideia vale para a rotina de trabalho: ninguém realiza várias tarefas “ao mesmo tempo”, diz Andréa. No máximo, alternadamente, com a atenção ora em uma, ora em outra – o que também não é recomendável, embora possa até ser valorizado: “Nossa, Fulano faz três coisas ao mesmo tempo”. Não faz. Nem deve tentar. Mas existe esta pressão para ser melhor em tudo, diz a professora.

Da mesma forma, estudantes, trabalhadores, e outros, cada vez não conseguem prestar atenção em seu interlocutor. “As pessoas não ouvem. Elas aguardam sua vez de falar”. Não faz muito tempo, o próprio diretor do Banco Central, Roberto Campos Neto, comparou o presidente Lula, mais atento, ao anterior: “Bolsonaro ficava disperso em três minutos”, disse à imprensa.

Em sua avaliação, o produto do trabalho deve ser ou possuir um valor, sem que o custo seja a exaustão. A burocracia, segundo a professora, é um dos obstáculos, pensando em um sentido amplo: além de relatórios, reuniões longas e frequentes, assim como grupos de trabalho e comissões são cansativos e não raro contraproducentes. “São horas e horas em que o funcionário poderia estar trabalhando no mais importante, mas é retirado para cumprir atividades burocráticas”, pondera.

Produtivismo

Muitas vezes, destaca Andréa, os gestores (patrões, etc.) contribuem para este cenário, pois adotam um ideal produtivista, ou seja, aderem a uma doutrina que considera que o aumento (quantitativo) da produção é o principal objetivo da evolução das estruturas sociais, políticas e econômicas. A charge desta página ilustra uma história que corre nos corredores das universidades.

O produtivismo acadêmico tem sido objeto de estudo e crítica desde os anos 90. Enquanto alguns o consideram positivo, outros o chamam de “mal necessário”, porque pelo menos garante que os pesquisadores mantenham um ritmo de produção – o que naturalmente não assegura qualidade de produção.

Dizer não

Uma das saídas, segundo a professora Andréa, é dizer “não”, mesmo para coisas importantes. “É triste, é difícil, mas é preciso dizer ‘não’ às vezes”, afirma. Aí sim, com organização e planejamento, é possível produzir com qualidade. Até porque, ela defende, planejar é mais empolgante que executar. Ou, emprestando sentido de um ditado, “o melhor da festa é esperar por ela”.

“Quem tem dez prioridades não tem nenhuma”, afirma a professora Andréa.

Outra atitude, bem mais corajosa (uns diriam radical) é reduzir o tempo de telas. Andréa conta que não tem mais perfil em nenhuma rede social e se sente mais feliz assim. “Melhorou minha qualidade de vida”, resume.

De acordo com ela, as redes provocam o sentimento de comparação entre as pessoas (sucesso, viagens, etc.), e isto acaba com a alegria de quem não tem. E sugere: “Fique um mês sem aparecer. Muita gente nem vai reparar na sua ausência”. Isto porque, diz ela, não são relações autênticas. “Redes sociais tiram você do foco. É um vício. Um vício em dopamina, em novidades e curtidas, que rouba a capacidade de atenção e concentração. O celular é pior que a geladeira”, arremata.

Na prática

Com seus alunos, sobretudo orientandos, Andréa pratica estas ideias. “Não tem cobrança a toda hora, mas tem cronograma e uma boa conversa no início do estudo”, explica. Para a professora, imprevisto não existe – todo mundo sabe que algum problema irá aparecer, só não se sabe qual e quando, e isso entra na equação do processo de pesquisa.

Além de planejar, ela enfatiza a necessidade de não deixar acumular tarefas nem deixar para a última hora. Afinal, sempre pode surgir aquele conflito entre o mais importante e o mais urgente. Assim, para ela, um bom trabalho de pesquisa não é produto de um gênio, mas de um trabalho metódico. Até agora, ela se diz satisfeita com a qualidade dos trabalhos orientados de Mestrado e Doutorado. Uma boa pesquisa, segundo ela, não é uma “colcha de retalhos” de referências, ou um resumo de vários autores, mas classificar, agrupar, fazer uma taxonomia, saber apresentar o conhecimento com suas próprias palavras.

Andréa também é atualmente a coordenadora dos TCC em Filosofia. Desenvolve projetos de pesquisa em Ética e Filosofia Política e Jurídica. E mantém um canal no YouTube (@AndreaFaggion) com orientações para trabalhos científicos. Tudo bem planejado.

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