Como é duro trabalhar!

Como é duro trabalhar!

A partir de um duplo foco – histórico e prospectivo –, pesquisa analisa transformações no mundo do trabalho e, particularmente, as resistência a ele.

A Psicologia Social é uma especialidade que transita entre a Psicologia e as Ciências Sociais, ao estudar as relações do indivíduo com seu meio social, e a influência deste sobre aquele. É natural, portanto, que se ocupe de um tema social nevrálgico: o trabalho.

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Edição número 1428
de março de 2024
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O professor Paulo Roberto de Carvalho (Departamento de Psicologia Social e Institucional) coordena, desde 2019, um projeto de pesquisa intitulado “Expressões da resistência ao trabalho”. Glorificado, prazeroso procurado, mas também às vezes opressor, odiado, fetichizado, será o trabalho, nos moldes como o temos hoje, necessário? Será possível viver – bem – sem trabalhar?

Estas são algumas perguntas que desafiam os pesquisadores. O projeto objetiva avaliar criticamente os vínculos entre o ser humano e o trabalho, a partir de bases teóricas de pensadores do modo de produção capitalista, como os conhecidos Max Weber e Karl Marx, e ainda o filósofo norte-americano Henry David Thureau (1817-1862) e Paul Lafargue (1842-1911), jornalista revolucionário socialista franco-cubano, que defendeu o “direito à preguiça”.

Professor Paulo Roberto: “O Capitalismo se apropria dos movimentos de ruptura e anexa a lógica do lucro a eles”.

Estas lentes teóricas, porém, voltam-se para o século XXI, quando contingentes significativos da população mundial enfrentam o desemprego ou o subemprego. Faltam empregos formais, mas… são eles a única alternativa? Existe a opção de simplesmente não trabalhar?

O trabalho é valorizado desde a Antiguidade. No Livro de Provérbios (escrito por volta do século X antes de Cristo), o capítulo 22, versículo 29, diz: “Você conhece alguém que faz bem o seu trabalho? Saiba que ele é melhor do que a maioria e merece estar na companhia de reis”. Já na segunda epístola à comunidade da Tessalônica, Paulo de Tarso escreveu: “Quando ainda estávamos com vocês, nós lhe ordenamos isto: se alguém não quiser trabalhar, também não coma”.

Quando a Idade Média já começava a declinar (século XIII), e a burguesia começava a despontar, surgiu entre a população camponesa a ideia de um lugar chamado Cocanha: um país imaginário onde tudo era feito de comida e bebida. Os rios eram de vinho, as casas eram comestíveis, os pratos vinham andando até as pessoas para serem devorados. O trabalho era proibido, e os dias da semana eram só domingos e feriados. Para a população pobre, uma utopia para fugir do trabalho árduo e a falta de perspectiva. Para a burguesia incipiente, um escândalo: coisa de gente vagabunda.

Trabalho e moral

Os séculos foram passando e o trabalho os atravessou como componente fundamental do sucesso, da competência ou da dignidade. Assim como se firmou a ideia da recompensa pelo esforço e pelo mérito. Basta lembrar da fábula da cigarra e da formiga: esta é recompensada pelo seu esforço, enquanto a outra paga um alto preço por não trabalhar. Como se vê, o trabalho se mistura com uma moral.

Os movimentos que tentaram se opor a este modelo ainda pensavam dentro da lógica capitalista, por isso não chegavam a propor mudanças sociais estruturais. A exceção foi o Anarquismo, movimento nascido na segunda metade do século XIX e que chegou ao Brasil com os imigrantes europeus, até o início do século XX. O Anarquismo era contra qualquer tipo de dominação e hierarquia, fosse ela política, econômica, social ou cultural.

“Operários” (1933), de Tarsila do Amaral, representa o processo de industrialização de São Paulo.

Esta tal de lógica capitalista é forte e resistente, e tem sabido voltar as oposições contra elas mesmas. “O Capitalismo se apropria dos movimentos de ruptura e anexa a lógica do lucro a eles”, diz o professor. Assim, o que começa como uma ameaça de ruptura vira modinha, embalável, consumível, e geradora de lucro a quem souber capitalizar.

Trabalho, não. Experiência!

Assim, atualmente, a ênfase não é mais no trabalho, explica o professor Paulo. Tampouco na acumulação de bens. Para gerações mais novas, o que vale é a “experiência”. Assim, sua “ocupação remunerada” (designações novas são muito apreciadas) precisa ser prazerosa, sem frustrações ou sacrifícios. Por isso muitas atividades desejadas hoje são estéticas, como música e artes plásticas.

O dinheiro não é mais para comprar um automóvel ou a antes sonhada “casa própria” de outras gerações. O transporte é de aplicativo e para morar um flat ou studio está ótimo. O dinheiro é para comprar o ingresso do show, a passagem para o local onde se fará trilhas, levar até a praia que está “bombando”, à festa que vai reunir todo mundo.

O que importa é o presente. Porém, o professor faz um alerta: esta exagerada presentificação gera um efeito perigoso – a falta de um projeto de vida, que fica desfocada.

A ideia de “experiência” é fácil de verificar em outros aspectos da vida social, como o turismo. Pelo discurso publicitário, não trata mais de almoçar ou jantar num restaurante, mas de ter uma “experiência gastronômica”. Igualmente, os hotéis não oferecem mais “hospedagem”, mas “experiências” em seus espaços.

Num mundo assim, quem quer suar do próprio rosto para conseguir seu sustento? Daí a resistência ao trabalho.

Resistências pelo mundo

De acordo com o professor Paulo Roberto, há resistências no mundo todo. Em alguns países, os jovens planejam trabalhar só até determinada idade. Em outros, trabalham só o suficiente para receber alguns meses de seguro-desemprego, num ciclo sem fim.

A resistência chegou a gerar movimentos como o “antiwork”, totalmente contra a ideia de “vestir a camisa” (muito difundida nos anos 90) e de ser workaholic, porque nada disso é, no fundo, valorizado pelo empregador. Surgido antes da pandemia, fortaleceu-se durante o período de quarentena, que não favoreceu aqueles que desenvolvem trabalhos braçais e, portanto, presenciais.

Outro movimento, conta o professor Paulo, é o quiet quitting, uma espécie de “abandono silencioso” que prega que o empregad… ops, colaborador faça tão-somente o mínimo necessário que lhe é atribuído. Novamente o período pandêmico contribuiu: com a perda de parentes e amigos, muitos se indagaram por que se dedicar tanto ao trabalho ao invés de passar mais tempo com a família.

Do outro lado do mundo, a China se desenvolveu rapidamente, mas este esforço não passou incólume nem foi a baixo custo. Lá, muitos empresários adotaram a política das 996 horas: exigiam uma jornada de trabalho das 9h às 21h, 6 dias por semana, ou seja, 72 horas por semana. Houve protestos em 2019 e, em 2021, o Tribunal Popular declarou o sistema ilegal. Ainda assim, em abril daquele ano, surgiu o movimento Tang Ping (em português: “ficar deitado”). Mais radical ainda é o “bai lan” (“deixar apodrecer”): movimento de jovens que preferem desistir de tudo por terem perdido a esperança, assim como o propósito de viver. Pois se é assim, para que qualquer sacrifício? Estes jovens ficam em casa sem fazer nada.

No Brasil, foi cunhado o termo “geração nem nem” para designar aqueles nascidos aproximadamente entre os anos 2000 e 2005, que hoje não querem nem estudar, nem trabalhar. Vivendo confortavelmente na casa dos pais, com Internet à disposição e sem a necessidade de pagar contas, eles também se opõem à ideia de trabalhar. Pra quê?

Alternativas?

O projeto continua mapeando as possíveis “linhas de fuga”, ou tentativas de resistência ao trabalho e ruptura com o modelo vigente. Se nos anos 60 houve o movimento hippie, nos dias atuais surgiu o de “Simplicidade Voluntária”, um estilo de vida com menos telas e mais Natureza; relações humanas mais profundas e uma espécie de minimalismo material.

Mas enfim, haveria modos de vida alternativos? Para Paulo Roberto, é bom lembrar que a tecnologia reduz o trabalho humano. Em alguns países, isso levou à redução da jornada semanal de trabalho. O Brasil nem cogita discutir isso. Pelo contrário: aqui, os dubladores profissionais iniciaram um movimento para defender seu trabalho, ameaçado pela Inteligência Artificial.

Em todo caso, o professor diz que o modelo hegemônico de relações de trabalho não precisa ser o único. Nem deve, pois o ser humano não pode ser definido pelo trabalho. Ele é muito mais que isso, afirma. O ideal é transformar a sociedade, de modo que as pessoas possam realizar outras atividades que não as laborais, reapropriando-se de suas vidas.

Futuro do projeto

O professor Paulo Roberto está em processo de aposentadoria e deve ser substituído, na coordenação do projeto, pela professora Sonia Regina Vargas Mansano, do mesmo Departamento, já participante das pesquisas. Até aqui, o projeto já contou com a participação de estudantes de graduação e pós-graduação, gerou publicações (capítulos de livros) e apresentações em eventos científicos, inclusive de nível internacional. Também produziu uma dissertação sobre “vagabundagem”.

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