Pandemia de contradições

Pandemia de contradições

O período de quarentena e distanciamento social potencializou muitos problemas sociais com os quais os assistentes sociais tiveram que lidar, inclusive na própria atuação.

O mundo de 2020: aulas presenciais suspensas, trabalho remoto, estádios vazios, igrejas esvaziadas, festas canceladas, distanciamento (mais físico do que) social. Mesmo assim, o mundo não parou, e nenhum tipo de vulnerabilidade social deixou de existir. Pelo contrário: mais pessoas precisaram da assistência do Estado. Foi pensando nas difíceis condições deste cenário que surgiu, no início de 2021, o projeto de pesquisa “Serviço Social e Comunicação: a linguagem como elemento essencial para o trabalho do/da Assistente Social”, coordenado pela professora Mabel Mascarenhas Torres.

O atributo alt desta imagem está vazio. O nome do arquivo é Jornal-Noticia-1024x265.jpg
Edição número 1430
de maio de 2024
Confira a edição completa

O problema da linguagem, para a pesquisadora, não é novo. Já havia sido abordado em seu Doutorado, concluído em 2006 na PUC/SP. Mais tarde, orientou outra pesquisadora que estudou as estratégias de comunicação na política de assistência social a partir de sites oficiais, observando questionamentos e recomendações feitos pelos profissionais da área. A defesa da tese foi exatamente na época da suspensão das atividades presenciais, em março de 2020, e mostrou argumentos extremamente atuais, associados principalmente ao uso de tecnologia de informação e comunicação, ferramenta que ganhou evidência nos dois anos seguintes. A orientanda, Claudiana Tavares da Silva Sgorlon, tornou-se docente na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu, e vice-coordenadora do projeto.

Conforme rememora a professora Mabel, em 2020 o cenário era de certa confusão, porque ninguém sabia direito como proceder diante da situação pandêmica. Aspectos sanitários, econômicos e políticos, para ficar só nestes, travavam uma espécie de queda de braço pela hegemonia do discurso, e o resultado todos conhecem: muita desinformação – apenas mais um dos tantos elementos potencializados durante o período pandêmico.

No período pandêmico, uma série de cuidados sanitários foram tomados em todo o país.

Apesar do distanciamento obrigatório, os usuários muitas vezes precisavam de um atendimento presencial – por exemplo, comparecer a um tribunal. Embora grande parte dos assistentes sociais tivessem passado para o trabalho remoto, às vezes precisavam ir a algum local para o atendimento, e medidas de segurança sanitária foram adotadas, como o profissional ficar do lado de dentro enquanto o usuário ficava do lado de fora. No mais, em casa, ferramentas como o whats app, vídeo (Meet ou Zoom), Twitter e Instagram foram cada vez mais utilizados. Mabel relata que muitas Prefeituras desenvolveram suas redes sociais como canal de comunicação a partir dali. As condições forçaram este desenvolvimento, que vinha até então a passos mais lentos. E melhor ainda: os profissionais de Serviço Social foram chamados a opinar e dialogar sobre a questão.

Problema resolvido? De jeito nenhum! Mais um caso de contradições expostas à luz, segundo a pesquisadora. Afinal, grande parte da população, especialmente o contingente mais vulnerável socialmente, não tem acesso à Internet (36 milhões em 2022, segundo o IBGE), nem um smartphone com câmera de 50 mil megapix, não tem e-mail nem whats app. Não conhece Facebook ou You Tube. Quase 1/5 dos brasileiros sequer tem conta bancária, segundo dados de 1 ano atrás. São mais dois aspectos que expuseram contradições: tecnológico e comunicacional.

Então, ficou ainda mais evidente a falta de acesso de brasileiros a direitos assegurados por lei, inclusive a Constituição Federal, tanto por questões sanitárias quanto tecnológicas e de comunicação. Os profissionais de Serviço Social foram convidados a analisar a nova realidade, propor projetos e tomar decisões que solucionassem os problemas surgidos, sempre com o dever legal e ético no horizonte. “Apareceu uma brecha digital. Às vezes o usuário, e até o assistente social possuíam o equipamento, mas não a habilidade”, comenta Mabel. De fato, o próprio serviço de Internet teve que melhorar, ficar mais veloz, para atender ao aumento de pessoas navegando por ela a trabalho, estudos e outras atividades que já existiam, mas foram potencializadas.

Direitos fundamentais foram abalados pelas novas circunstâncias, a exemplo das relações de trabalho. Em casa, muita gente trabalhou mais horas e reduziu o tempo de descanso, às custas dos próprios recursos (energia elétrica, computador, tempo, etc.), sem qualquer compensação, de nenhum tipo. Além disso, o local de trabalho e de descanso passaram a ser o mesmo, porque sair de casa significava uma série de restrições, para não dizer portas fechadas. “O mundo íntimo e o mundo público se misturaram”, resume a professora Mabel. Assim, a saída foi ficar mais tempo no mesmo lugar – diante do computador (ou celular).

Divulgação.

Notas técnicas

Aí entrou o projeto de pesquisa: para levantar dados desta brecha ao mapear as orientações dos Conselhos Regionais e Federal, que produziram Notas Técnicas referentes ao teletrabalho e teleperícia, entre outros. A informatização de serviços pelo governo não é novidade nenhuma, aponta a professora: o Dataprev (Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social) foi criado em 1974, hoje ligado ao Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. Mas a pandemia expôs nós e contradições que tiveram que ser desfeitos sem interromper os serviços.

Tudo isso, pondera a professora Mabel, refletiu na maneira de comunicar, oficial e oficiosamente. É fácil entender a ideia de que as mensagens trocadas pelas redes sociais, por exemplo, têm características próprias, e são marcadas pela extensão reduzida e maior uso de imagens.

O Serviço Social, como todas as outras áreas, utiliza a língua escrita e a oral. Lida com usuários bem diferentes uns dos outros, ao mesmo tempo em que se reporta a colegas de profissão, agentes e autoridades públicas. Ainda assim, de acordo com a pesquisa, a linguagem em geral teve que se tornar mais compacta. “A limitação de caracteres foi um desafio”, conta a professora. O aumento do uso da escrita fez gerar elementos que substituíssem o subtexto de uma conversa presencial (entonação, volume da voz, expressões faciais, etc.). “Os profissionais também tiveram dificuldades, e tiveram que reelaborar seu próprio pensamento para serem compreendidos”, observa Mabel.

Assim, uma das perguntas do projeto foi: “Será que a linguagem está sendo eficiente?” Até porque não se trata apenas da habilidade em comunicar pelos canais tecnológicos, mas vai além. Mabel exemplifica com implicações éticas. Por exemplo, o sigilo: ao conversar com um usuário, será que ninguém mais na casa dele está ouvindo? “O entorno pode não ser seguro”, diz ela. A professora lembra, aliás, que as conversas pelo vídeo expunham este entorno, como se o interlocutor estivesse em sua própria casa. No início, não havia o recurso de desfocar o fundo ou colocar uma outra imagem.

Divulgação.

Desinformação

Tanta informação em circulação criou outro monstro: a desinformação, de todos os tipos. Esta é outra contradição abordada no projeto de pesquisa. “Tivemos desde a simples negação da doença, até o chip inserido na vacina, além das inúmeras informações falsas sobre o auxílio emergencial”, relembra Mabel. Segundo ela, foram criados pelo menos uma centena de falsos aplicativos sobre o auxílio, o que deixou milhares de vítimas de estelionato. Sempre é bom lembrar: no início, o desencontro de informações gerou uma verdadeira babel – ninguém tinha certeza absoluta de nada.

“A pandemia trouxe à tona muita coisa até então sem debate”, analisa a professora. Em sua perspectiva, o período de isolamento criou – olha aí mais uma contradição – uma sociedade de indivíduos com menos vida íntima. Pior: aumentaram as notificações de violência contra idosos, crianças e mulheres, conforme documentos oficiais de órgãos como Organização Mundial da Saúde, Ministério da Saúde, Fundação Osvaldo Cruz, replicados pelos Conselho Federal e Estaduais de Serviço Social. Lembra daquela história espalhada nas redes sociais de que depois da pandemia a Humanidade sairia mais compassiva, e as pessoas seriam mais humanas? Você não acreditou nisso, né? Não compartilhou nada do tipo no seu perfil, certo?

A observação dos sites dos Conselhos revelou três eixos principais de notícias: (muitas) bandeiras de lutas; alterações do trabalho (cenário que já vinha piorando antes mesmo da pandemia); e atuação profissional (aumento de demanda de usuários e adaptações ao cenário). E eis outra contradição: ao mesmo tempo em que o Estado é “demonizado” (na expressão de Mabel) como ente ineficiente cheio de servidores que pouco ou nada trabalham, médicos e enfermeiros de hospitais públicos e unidades básicas de saúde foram elevados a heróis durante a pandemia e aplaudidos por justo mérito. Ainda assim, na avaliação da professora, a sociedade brasileira continua sofrendo uma descaracterização e desregulamentação de direitos, por exemplo com as leis que têm precarizado as relações de trabalho.

Pós-pandemia

Assentada um pouco a poeira, o projeto não deixa de se voltar igualmente para a própria Academia. Alunos e docentes também sentiram o impacto do isolamento, estudo remoto, falta de vivência no Campus, e ainda precisam colocar este fenômeno sob lentes teóricas. “A profissão continua, e muita coisa continua, como necessidades que já existiam, a precarização”, afirma a professora Mabel. Mas períodos de tensão ou ruptura podem ser um “mal necessário”, segundo ela, porque ameaçam aquele controle sobre tudo e favorecem a capilaridade dos efeitos, que podem chegar a todos, embora normalmente também criem problemas que não existiam.

Produção científica

O projeto tem participado de eventos científicos e produzido conteúdo (textos). Em maio, em Londrina, deve participar do triplo evento V Congresso Internacional de Política Social e Serviço Social: desafios contemporâneos; VI Seminário Nacional de Território e Gestão de Políticas Sociais; V Congresso de Direito à Cidade e Justiça Ambiental.

Já realizou apresentações no exterior, como na JOINPP (A Jornada Internacional de Políticas Públicas), e publicou dois artigos em revistas e um capítulo de livro na Universidade Federal do Mato Grosso. Outra publicação deve ser lançada pela Universidade de Temuco (Chile), pois o projeto integra um grupo de pesquisadores sul-americanos. A ideia, aliás, é formar uma rede internacional de pesquisadores.

O projeto conta com a participação de docentes da Universidade de Brasília (Kenia Augusta Figueiredo), Universidade Estadual de Maringá (Eduardo Luís Couto e Vanessa Rombola Machado), e ainda estudantes de graduação e pós-graduação, incluindo bolsistas de Iniciação Científica, CNPq e Fundação Araucária. Obteve recursos financeiros e bolsas através de editais e tem orientandos de todos os níveis: graduação, Mestrado e Doutorado.

A professora Mabel também terminou, em fevereiro deste ano, uma pesquisa de pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que abordou o uso de tecnologias nas competências do profissional de Serviço Social, levando em conta “alterações invisíveis” verificadas nos últimos anos.

“A pandemia trouxe à tona muita coisa até então sem debate”, analisa a professora Mabel Torres, coordenadora do projeto de pesquisa.
Leia também