Pesquisa analisa condição do rap no Brasil em tempos atuais

Pesquisa analisa condição do rap no Brasil em tempos atuais

Segundo Daniela dos Santos, estilo passou por mudanças nas últimas décadas e se inseriu nas classes média e alta, diferente do que ocorria há 30 anos.

Em 2002, os Racionais MC’s cantavam, pela voz de um dos maiores rappers da cultura brasileira, Mano Brown, que o mundo era diferente “da ponte para cá”. A canção demarcava a periferia paulistana, em especial a Zona Sul, e criticava ferozmente quem cultivava a cultura do rap sem representá-la de fato – o “lado de cá” da ponte, visto pelo eu lírico periférico, representaria principalmente a região do Capão Redondo, um dos principais redutos do rap brasileiro. Duas décadas depois, essa mesma canção, presente num dos álbuns de maior sucesso comercial do País até então, poderia ser atualizada.

Hoje, o rap nacional ultrapassou as barreiras de classe, cor e gênero no Brasil: se antes o estilo era considerado uma expressão das classes subalternas, majoritariamente feito por homens negros e sem receber muitos holofotes da indústria cultural, hoje é cultuado em horário nobre em programas de rádio e TV, assim como é tocado milhões e milhões de vezes nos agregadores como Spotify e Amazon Music.

Entender o que chamou de “a nova condição” do estilo no País é o intuito do projeto de pesquisa da professora Daniela Vieira dos Santos, do Departamento de Ciências Sociais (CLCH). Ela coordena o projeto “A nova condição do rap no Brasil”, que foca prioritariamente em entender as relações entre os novos artistas do rap (com destaque para Emicida e Criolo, dois dos maiores da indústria nacional) e a ascensão das novas classes médias nos anos 2000, com destaque para os anos 2010 em diante.

“Nada como um dia após o outro dia” (2002). O álbum duplo dos Racionais MC’s estendeu o sucesso de seu predecessor, “Sobrevivendo no Inferno”. Disco é considerado um dos maiores da música brasileira.

O projeto, que foca no rap paulistano, é um desdobramento do estágio pós-doutoral da pesquisadora, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com início em 2016. Na ocasião, Daniela chegou a ir para a França para continuar os estudos. Durante um ano, em 2017, ela atuou na Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA), sob orientação do professor Karim Hammou. A pesquisa de Daniela foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

“Nóis aqui, vocês lá, cada um no seu lugar”

A pesquisadora definiu, em artigo, que “a nova condição social do rap” é uma categoria que expressa um processo social de mudanças do lugar social do gênero musical, que hoje se estendeu para as classes médias e alta. Essas mudanças sociais, assinala a pesquisadora, estariam inseridas num processo mais amplo. “Essas alterações no estilo dialogam com outras, que foram evidenciadas no país a partir dos anos 2000, como as políticas de ações afirmativas, que levam as populações periféricas a universidades e faculdades públicas e privadas”, comentou. Também entram na conta da pesquisadora os avanços sociais e econômicos identificados na virada do milênio.

“Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe…” (2009), do rapper paulistano Emicida. Leandro Roque de Oliveira já é mencionado como um dos maiores compositores de rap dos anos 2000.

A grande virada do rap nacional, para a pesquisadora, que evidencia essa mudança de lugar do estilo, veio com dois trabalhos de peso: “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe…” (2009), de Emicida, e “Nó na orelha” (2011), do rapper Criolo. “São trabalhos importantes pela mescla de estilos também. Se antes o uso do sample (trecho sonoro reproduzido de uma gravação para a outra), característica marcante do rap, focava mais na cultura negra, hoje temos o uso de estilos como samba e MPB. Uma mistura que antes não existia e evidencia essa recolocação do estilo entre outros que não vieram necessariamente da cultura afrodiaspórica”, explica a pesquisadora. 

O rap brasileiro já dava indícios de que essa virada estava para acontecer no fim dos anos 1990, com a gravação de “Sobrevivendo no inferno” (1997), dos Racionais MC’s. O álbum chegou a ser censurado devido às críticas à criminalização da juventude periférica no Brasil. “Porém, naquela época, não existiam os fatores que provocaram um maior alastramento do estilo a outras classes sociais”, ponderou.

Outro ponto importante, que sinaliza essa virada do estilo, vem com a criação do Laboratório Fantasma pelo rapper Emicida. A empresa comercializa diversos produtos, como discos, camisetas e bonés, de artistas como Rhael, Drik Barbosa e Dona Jacira.

A vez delas

Uma das mudanças mais significativas no que Daniela chamou de “nova condição do rap” é a entrada das mulheres no estilo. O “rap feminino”, que começou a ganhar espaço em vozes como a da cantora Negra Li, que estourou com o grupo RZO, ganha cada vez mais destaque nacional nas vozes de artistas como as gêmeas paulistanas Tasha & Tracie e a brasiliense Flora Matos, que surgiu na cena em 2009. “Entender esse novo fator no rap, que é a entrada das mulheres na cena, assim como a internacionalização do estilo (a ida dos Racionais aos Estados Unidos, por exemplo), são meus objetivos futuramente”. 

A brasiliense Flora Matos apostou no sincretismo entre MPB e rap. Ela desponta como uma das revelações nos gêneros há 10 anos.

Interessados em participar do projeto de pesquisa podem entrar em contato com a professora pelo e-mail daniela.vieira@uel.br.

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