Médica formada na UEL, Letícia Cunha é a personagem no Mês da Consciência Negra 

Médica formada na UEL, Letícia Cunha é a personagem no Mês da Consciência Negra 

Ex-aluna de escola pública concluiu o curso de graduação mais concorrido do Brasil, que, a despeito das políticas de inclusão social e racial, ainda têm poucos alunos negros.

Ao longo de sua trajetória, marcada por ações permanentes de enfrentamento ao racismo, a UEL concedeu o título de Doutor Honoris Causa a grandes personagens da história, como ao principal líder político da África do Sul, Nelson Mandela, e ao arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu. No próximo dia 18 de novembro, a honraria será concedida à líder do Movimento Negro em Londrina, Vilma Santos de Oliveira, a Yá Mukumby, falecida em 2013. 

Como forma de valorizar a trajetória de personagens de uma nova geração, no Mês da Consciência Negra, a Agência UEL traz a história da londrinense Letícia de Faria Cunha, 25, egressa do curso mais concorrido nas universidades brasileiras – Medicina – e parte da população que se destinam os esforços da luta pela ampliação do acesso ao ensino superior público, gratuito e de qualidade. Negra e ex-aluna da rede pública de ensino, a jovem ingressou na UEL pelo sistema de cotas e, aos 24 anos, colou grau ao lado de quase 80 graduandos de Medicina, no final do ano passado. No entanto, ainda é uma das poucas médicas negras no País, cuja população é formada por 56,1% de autodeclarados pretos e pardos, conforme aponta a pesquisa de domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada neste ano.

“Eu mesma nunca fui atendida por um médico negro”, lamenta Letícia, que é médica na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Tókio, Zona Leste de Londrina. E, embora a desigualdade esteja sendo reduzida, “ainda é muito difícil que uma pessoa negra usando jaleco seja entendida como médica no ambiente hospitalar”, diz, sem deixar de exaltar a importância de enfermeiros e técnicos de Enfermagem.

Presença negra 

Para ela, a presença de médicos negros no ambiente hospitalar também pode refletir positivamente no atendimento, à medida em que, em alguns casos, uma maior identificação com os fatores sociais que podem estar agravando determinados quadros de saúde pode trazer bons resultados na investigação diagnóstica e tratamento.

Como exemplo, lembra de uma paciente que possuía um quadro de hipertensão agravado pela obesidade e por uma vida profissional muito estressante. No entanto, havia sido encaminhada para casa sem ter sido diagnosticada corretamente. “Fui olhar os remédios que haviam sido passados em outro posto de saúde para ela e, sabe quando a pessoa (que realizou o atendimento) não se preocupou em olhar para o perfil e as condições sociais? Então, essa paciente ficou muito grata porque mudamos os medicamentos. Ela comentou que a vida era muito estressante e estava sem receber salário. Depois, ela retornou um pouco melhor e me agradeceu muito”, conta sobre o atendimento, que considerou ter sido mais humanizado. 

Ao lado da mãe, Arleide Gomes de Faria, da avó, Ozelina Gomes de Faria, e da tia, Elielza Isabel Silva, Letícia comemora a formatura em Medicina, no final de 2021 (Arquivo pessoal).

Da tela para a vida

Realizar uma investigação diagnóstica e encontrar as explicações para determinados quadros de saúde é uma atividade prazerosa para quem assistia, ainda na pré-adolescência, a séries de TV americanas consagradas e cuja solução de crimes e mistérios dependiam do trabalho de médicos legistas, psicólogos forenses e delegados atentos aos vestígios deixados pelos criminosos no corpo das vítimas. “Assistia muito ‘House’ e ‘CSI’. Sempre fui muito curiosa, gostava muito de entender como o corpo funcionava, como as doenças surgiam, como os remédios agiam e tudo sobre a própria investigação diagnóstica”, diz, fugindo das respostas previsíveis. Isso porque o desejo de ajudar as pessoas deve ser o norte na atuação de todos os profissionais de saúde, completa. 

Neste sentido, se sente grata por ter ingressado no curso da UEL, um dos melhores cursos do País, no qual o ensino da Medicina se desenvolve nos primeiros quatro anos a partir da discussão de casos práticos. “É chamado de Problem Based Learning, ou aprendizagem baseada em problemas. É assim na UEL”, conta. 

Trajetória 

Letícia ingressou na UEL em 2016, ao lado de outros quase 200 candidatos negros. À época, a política de ingresso encontrava-se em sua segunda fase. Após ter passado por uma avaliação, a Universidade optou pela implementação da reserva de 40% das vagas para estudantes de escolas públicas, sendo metade destas vagas para estudantes negros. A política de ingresso ainda passaria por outra mudança, entre 2016 e 2017, quando foi alterada a reserva de 5% das vagas para estudantes negros independentemente de seu percurso, podendo ter atravessado o percurso escolar parcial ou integralmente em escola privada, bem como serem imigrantes ou refugiados. 

No entanto, pertencer, de fato, àquele novo universo foi algo que “levou um certo tempo” para a moradora do Jardim Acapulco. Com apenas 18 anos, tendo sido aprovada em sua segunda tentativa depois de estudar nos colégios Estadual Hugo Simas e Aplicação da UEL, Letícia considera ter iniciado a trajetória acadêmica na UEL ainda “imatura”, e “sem ter a real dimensão do que era estar ali”. “Foi um choque de realidade”. 

“Viver” o curso de Medicina da UEL foi se tornando mais prazeroso à medida em que conheceu membros do Coletivo NegreX, que surgiu em 2015 para atuar politicamente nas áreas da saúde e educação. Dentre os temas abordados em seus eventos, estão fatores de impacto na saúde da população negra e a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS).  

Estudantes de Medicina participam do II Simpósio de Saúde da População Negra, em 2017 (Arquivo pessoal).
Residência em Saúde da Família 

No momento em que concedia entrevista, Letícia aguardava o resultado – positivo – da prova que prestou para o Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família. Outra possibilidade é atuar no Programa Médicos pelo Brasil. 

Questionada sobre seus maiores objetivos profissionais, avalia que cursar o Mestrado na UEL e, futuramente, atuar na docência seria um desfecho muito interessante para uma história que tem início nos corredores da Biblioteca Pública Municipal de Londrina, local onde aguardava todos os dias da semana pelo fim do expediente de sua mãe, a servidora pública municipal Arleide Gomes de Faria. Era entre os livros, revistas e gibis que a menina de olhos castanhos e cabelos cacheados se perdia, desenvolvendo um interesse pela leitura com obras como “Minha Mãe é Negra Sim”, da escritora mineira Patrícia Maria de Souza Santana, tesouro presenteado por sua mãe. 

Letícia considera que ter concluído a graduação traz “a sensação de ter realizado um sonho”, que dedica também ao pai Edson Cunha (in memorian) e à irmã, Isabela, egressa do curso de Jornalismo da UEL. “Parece até besta dizer, mas, é exatamente isso. É algo que eu via como muito distante, que seria tão difícil. Então, corri muito atrás mesmo e pensei que para a minha família era impossível, que minha mãe não teria conseguido. Ser a primeira médica da família é um sonho realizado”, emociona-se. 

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