Projeto lança mão da matemática para mapear características dos homicídios no Brasil
Projeto lança mão da matemática para mapear características dos homicídios no Brasil
Com metodologia raramente utilizada, pesquisa pretende lançar luz sobre a multiplicidade de fatores que envolvem a violência letal intencional.Entre 1990 e 2000, a taxa de homicídios em Cambé (PR) era de 6 por 100 mil habitantes. Na década seguinte, os números saltaram para 26/100 mil. Porém, após alcançar o pico histórico de 39 casos por 100 mil em 2012, houve uma queda acentuada, fazendo com que a taxa voltasse aos patamares da década de 90. Entender os motivos pelos quais ocorreu essa gangorra, além de toda a complexidade que envolve as dinâmicas homicidas no Brasil e, em particular, no interior do país, são desafios do projeto de pesquisa “Situações Mortais: uma análise das características e mudanças das estruturas e processos das situações dos homicídios no interior do Brasil”, de autoria de Cleber da Silva Lopes, professor do Departamento de Ciências Sociais (CLCH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Para dar conta desses desafios, o projeto – que está em fase inicial e foi contemplado no edital “Bolsas de Produtividade em Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico” da Fundação Araucária, em fevereiro deste ano – lança mão de uma abordagem nada convencional. Isso porque, tradicionalmente, o foco dos estudos sobre homicídios tem se baseado apenas nos comportamentos (seja do agressor ou da vítima), o que gera limitações para explicar o fenômeno, pois apenas descrevê-lo sem considerar a caracterização da configuração em que ele se insere pode resultar numa explicação insuficiente.
O projeto pretende sanar essa deficiência mudando o foco da análise para as “estruturas das situações dos homicídios“. O termo refere-se a todo o conjunto de variáveis e as múltiplas inter-relações entre elas, tendo como foco de análise três elementos fundamentais: vítima, agressor e crime. Conforme explica o professor Cléber, “A estrutura da situação do homicídio é a configuração de um evento que resulta na violência letal intencional. A situação se configura pelas características das vítimas, dos ofensores e do crime, por isso os homicídios são muito diversos. Podemos ter vítimas com perfis variados, ofensores com perfis variados, e crimes variados”.
As estruturas das situações dos homicídios, portanto, resultam das múltiplas variáveis e suas combinações que estão presentes nas vítimas e agressores (gênero, idade, raça, status socioeconômico) e no crime (relação entre vítima e ofensor, número de ofensores, tipo de arma e local do homicídio). Estudar os homicídios em Cambé ao longo de trinta anos oferece boa oportunidade para entender essas características das situações de homicídio e suas variações. Uma das hipóteses dos pesquisadores é de que ao longo do tempo os homicídios passaram a ser cometidos por homens mais jovens usando armas de fogo ao invés de facas.
Outra hipótese é que nos anos 90, os crimes eram principalmente ligados a conflitos envolvendo a defesa da honra e da masculinidade, passando a se relacionar no ano 2000 com conflitos de gangues juvenis e, posteriormente, ao tráfico de drogas. “A nossa principal hipótese é que esses conflitos de gangues no início dos anos 2000 foram responsáveis pelo aumento dos homicídios, mas ainda não se sabe o que motivou a queda, que pode estar relacionada com a dinâmica do tráfico de drogas. Talvez com a chegada de certas organizações criminosas, implanta-se uma ideologia do tipo ‘não vamos nos matar, os inimigos são o Estado e a polícia, pobre não mata pobre’”, suspeita o professor.
Além das variáveis sociodemográficas e das características das situações de crime, a análise também vai considerar o recorte entre os tipos de motivação: instrumentais e expressivas. As primeiras dizem respeito às ocorrências nas quais o ofensor racionalmente busca obter vantagens com o crime, como dinheiro ou posição social. Já as expressivas, são ações intempestivas que ocorrem em decorrência de raiva, inveja, ciúmes ou frustração.
Matemática
Para dar conta dessa diversidade de variáveis – contexto, aleatoriedade e multifatoriedade – com vistas a encontrar padrões que expliquem melhor as situações de homicídios, o projeto pretende usar uma metodologia pouco usual, raramente usada na área de estudos sobre crime: a matemática, mais especificamente a Qualitative Comparative Analysis (QCA, ou Análise Comparativa Qualitativa), que usa álgebra booleana para modelar diferentes combinações de atributos que configuram as situações homicidas e suas prevalências e mudanças ao longo do tempo. O método é útil porque se volta para a explicação de fenômenos sociais que resultariam da ação conjunta de fatores e não do efeito isolado ou interativo de algumas poucas variáveis, como é feito na análise estatística quantitativa usual. A QCA considera que diferentes combinações de atributos, caso a caso, podem produzir efeitos diversos e prevê procedimentos lógicos para avaliar esses fenômenos de maneira sistemática.
Para isso, o método adota procedimentos baseados na teoria dos conjuntos e em álgebra booleana. Conforme explica o professor Cleber Lopes, a análise pode proporcionar uma leitura mais fina dos padrões homicidas. “Quando se tem poucos casos e muitas variáveis, não se consegue fazer análise estatística. A QCA tem sido muito utilizada para lidar com explicações causais, quando se tem muita complexidade, muita heterogeneidade e padrões múltiplos”. Ainda conforme o professor, os métodos quantitativos tradicionais trabalham com a ideia de que quando A e B estão presentes, aumenta-se a probabilidade de o resultado C ocorrer. Já a Análise Qualitativa Comparativa parte da ideia de que pode haver equifinalidade, ou seja, que padrões causais variados, podem produzir resultados semelhantes ou também diversos, como A e B resultando em C ou D ou E.
Como se vê, o projeto tem relevância e impactos teórico, metodológico e prático. Do ponto de vista teórico, é sabido que os estudos sobre homicídios têm ficado aquém do esperado por falta de consenso sobre o escopo dos comportamentos que as teorias deveriam tentar explicar e, conforme defende o projeto, a superação dessas limitações passa pela mudança de foco dos comportamentos para as situações de encontros violentos com desfecho letal. Do ponto de vista metodológico, o uso da QCA se mostra relevante pois a sociologia do crime no Brasil é uma área dominada por métodos qualitativos tradicionais e formada essencialmente por pesquisadores que têm pouco domínio sobre métodos e técnicas de pesquisa que utilizam a matemática como linguagem, impasse descrito por autores como o “calcanhar de Aquiles” dessa área de pesquisa.
Do ponto de vista prático, o estudo pretende contribuir para dar melhores subsídios para a criação de políticas públicas de prevenção da violência letal, pois quanto mais conhecimento houver sobre os padrões situacionais dos homicídios, maiores são as chances de tecer soluções sobre a questão. “Normalmente, quando se cria uma política pública para lidar com um fenômeno que é heterogêneo, se tem efeitos muito limitados, porque vai alcançar algumas dimensões do fenômeno, mas não outras”, comenta Cleber. Paralelamente, o projeto também pretende contribuir para a formação de outros discentes por meio da oferta de uma disciplina teórica na graduação sobre as explicações da violência letal intencional, além de outra disciplina metodológica na pós-graduação sobre a QCA.

Cleber da Silva Lopes é professor associado do Departamento de Ciências Sociais da UEL e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É membro da rede internacional Everyday Political Economies of Plural Policing e dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) “Violência Poder e Segurança Pública” (INViPS) e “Representação e Legitimidade Democrática” (ReDem). O professor também coordena o “Laboratório de Estudos sobre Governança e Segurança” (LEGS), grupo de pesquisa vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) criado na UEL a partir da articulação de estudantes e acadêmicos interessados em estudar o tema da segurança. O objetivo do LEGS é fomentar e disseminar estudos focados principalmente nos atores não estatais engajados na governança da segurança no interior dos Estados e no cenário internacional. Entre os diversos tópicos de interesse do grupo estão: privatização e pluralização da segurança; parcerias público-privado na área de segurança; política criminal e de segurança pública; e governança da segurança.