“PL das Cobaias” fere autonomia de estudos clínicos e pesquisas, comentam docentes

“PL das Cobaias” fere autonomia de estudos clínicos e pesquisas, comentam docentes

Regras mais brandas e menor autonomia dos participantes vêm preocupando pesquisadores. Defensores do PL afirmam que País pode receber até R$ 3 bi.

Menor autonomia dos participantes de estudos clínicos e prejuízos para as pesquisas de campo em áreas das ciências humanas no Brasil. Estas são as preocupações de docentes da UEL após a aprovação do projeto de lei nº 6.007/2023, que estabelece os direitos e deveres na relação entre pesquisadores, patrocinadores, entidades e participantes das pesquisas em seres humanos. O PL foi aprovado pelo Senado na semana passada e enviado em regime de urgência para a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Composto por nove capítulos, o “PL das Cobaias”, como é conhecido na casa, é o resultado de discussões que já passaram pela Câmara dos Deputados e chegaram ao Senado há sete anos, tendo recebido ao menos 60 alterações ao longo da sua tramitação. A redação final estipula as exigências éticas e científicas para a realização de pesquisas clínicas, instâncias e revisão ética, proteção dos voluntários e responsabilidade de pesquisadores e patrocinadores dos estudos. Além disso, cria regras de fabricação, uso, importação e exportação de bens e produtos para esse tipo de pesquisa e prevê as normas para o armazenamento e a utilização de dados e de material biológico humano.

Para parte da comunidade científica, a iniciativa surgiu para atender aos interesses da indústria farmacêutica, no sentido de “afrouxar” regras que visam a proteção dos participantes. Já os defensores do PL dizem que o Brasil deixa de receber uma fatia de cerca de R$ 3 bilhões em investimentos destinados às pesquisas clínicas justamente por não possuir uma legislação específica. Até os dias de hoje, as regras para a condução das pesquisas com seres humanos são definidas por resoluções e normas técnicas “vigiadas” por mais de 900 comitês de ética e, em última instância, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), uma das 19 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). 

O que diz o PL?

Um dos aspectos mais “polêmicos”, avalia a coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da UEL, Adriana Lourenço Soares Russo, é a redução do prazo para o fornecimento de medicamentos aos participantes das pesquisas. Pelas regras atuais, as empresas que patrocinam os estudos devem se comprometer em fornecer os medicamentos de forma vitalícia aos participantes dos estudos clínicos que se mostram eficazes. Já o PL estabelece prazo de cinco anos para o fornecimento gratuito, empurrando os participantes do estudo para a condição de “clientes” após o fim do prazo. 

Adriana Russo, coordenadora do CEP da UEL. Possibilidade de indenização, que foi excluída do PL, preocupa docentes (Arquivo UEL).

Professora do Departamento de Ciência e Tecnologia em Alimentos (CCA) da UEL, Adriana destaca outro ponto considerado “polêmico”, que está relacionado ao uso do placebo, ou seja, pílulas sem efeito algum utilizadas para comparar os efeitos dos medicamentos em fase de testes clínicos. As regras atuais, destaca a professora, proíbem a utilização do placebo em pesquisas que visam desenvolver fármacos para o tratamento de doenças cujos medicamentos já são fornecidos. “Placebo seria aquela pílula de farinha, que hoje não é permitido. Se já há um tratamento pré-existente, temos que testar a nova medicação contra a medicação padrão, que já é fornecida, porque contra ‘nada’, tudo acaba sendo melhor. E outra questão é que a pessoa que já tem uma doença não pode ficar sem a medicação (durante os testes)”, alerta a professora.

A professora não nega que a regulamentação irá trazer investimentos e avanços para a pesquisa em território nacional. Ao mesmo tempo, lamenta que este debate não esteja considerando as características da população brasileira.

Muitos (participantes) ao lerem termo de consentimento não conseguem compreender. Estamos falando de uma população que é muito diferente da dos Estados Unidos e do Canadá. É uma população muito mais vulnerável e que hoje o sistema CEP/Conep vem para proteger este participante. Hoje, o participante tem direito à indenização e isso também foi retirado.

Adriana Russo, coordenadora do CEP/UEL.

O PL 6.007/2023 é um substitutivo (texto alternativo) ao PLS nº 200/2015, de autoria dos ex-senadores Ana Amélia (RS), Waldemir Moka (MS) e Walter Pinheiro (BA). O texto aprovado pelos senadores foi o relatório do senador Dr. Hiran (PP-RR), que decidiu retomar o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos, suprimido pelos deputados.

Questionada se a sanção do texto pelo presidente Lula irá tornar sem efeitos práticos o trabalho das comissões de ética das universidades, a professora avalia que não, já que os órgãos de fomento, como a Fundação Araucária, deverão continuar exigindo pareceres para o financiamento da pesquisa no País. No caso da UEL, este trabalho, que é voluntário por parte dos membros do comitê, resultou na emissão de 879 pareceres somente em 2023. “E mais do que isso, na hora de publicar. As revistas internacionais exigem parecer de um comitê de ética. Acredito que vai continuar tendo essa demanda de trabalho, só que pode ser que, mais pra frente, diminua porque vai ser permitida a formação de comitês de ética próprios, pequenos grupos. Ainda não sabemos como esses grupos vão ser organizados”, diz.      

Retrocesso também nas humanidades 

A resistência ao projeto não é exclusiva de pesquisadores das áreas da Saúde e Biológicas, de modo que o avanço da matéria preocupa quem desenvolve pesquisas de campo nas áreas de Antropologia, Ciências Sociais, Sociolinguística, Educação e todas as demais áreas de Humanidades. “Para nós, essa lei é um grande retrocesso,” considera o professor do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas (CLCH) da UEL e coordenador do Fórum de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas, Linguísticas, Letras e Artes (FCHSSALLA), Frederico Augusto Garcia Fernandes. 

Ao lado da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), as 56 associações científicas e profissionais que compõem o Fórum vêm se movimentando contra a medida desde o início da sua tramitação, há mais de sete anos. A mais recente manifestação, logo após a aprovação do PL, foi pela manutenção do artigo que abre a possibilidade de dispensa da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por parte dos participantes das pesquisas. Documento exigido aos pesquisadores, o Termo de Consentimento traz segurança jurídica aos participantes e pesquisadores, no entanto, devido à natureza de algumas áreas, pode inviabilizar a produção acadêmica, destaca Fernandes. 

Professor Frederico é um dos participantes, como mediador, do Educare, promovido pela Acil e UEL.
Professor Frederico Garcia Fernandes. “A ética é estruturante para o pesquisador. Discuti-la é discutir ciência” (Arquivo UEL).

“Imagine um antropólogo que está trabalhando com contraventores, vamos supor uma pesquisa com traficantes. Jamais um traficante vai assinar um termo de consentimento porque aquilo poderia representar uma prova judicial contra ele próprio. Além do mais, uma pessoa dessa que às vezes dá entrevista pode ser jurada de morte pelo próprio grupo, então o sigilo é fundamental. Neste sentido é impossível um historiador, um sociólogo, ter esse termo”, explica o professor, destacando, também, a área que atua, a linguística. “Se ele (o pesquisador) falar para a pessoa que é professor, essa pessoa vai se autocorrigir, vai utilizar uma linguagem padrão e não os termos sociais, uma linguagem que ela não utiliza no grupo dela e isso afeta a pesquisa”, sustenta. 

Para o Fórum de Ciências Humanas, esta discussão já havia sido superada no âmbito do Sistema CEP/Conep a partir da expedição da Resolução CNS Nº 510/2016, que traz a distinção e libera os pesquisadores de humanas da apresentação do TCLE em casos específicos. Por outro lado, a resolução permite que participantes de pesquisas comuniquem seu livre desejo de participarem das pesquisas em registro escrito, imagético, falado ou testemunhal, o que deixou de ser considerado pelo Projeto de Lei 6.007/2023. 

Por que discutir ética em pesquisa?

Para colaborar com a discussão, o FCHSSALLA elaborou e publicou o documento “Diretrizes para a ética na pesquisa e integridade científica”, no qual são endossados princípios éticos como o respeito à liberdade, à igualdade, à autonomia das pessoas, à diversidade religiosa, responsabilidade na condução das pesquisas e o compromisso com a integridade acadêmica e com a honestidade intelectual, entre outros. O documento recebeu 300 contribuições e elaborou as diretrizes que devem instruir estudantes de graduação e pós-graduação de instituições de todo o País. 

[O documento] Traz um ponto fundamental: a ética não é uma questão apenas da legislação, mas é uma questão estruturante, um debate permanente que os cientistas e institutos de pesquisa devem fazer. Discutir ética é discutir ciência.

Frederico Garcia Fernandes, professor do curso de Letras e representante do Fórum FCHSSALLA. 

Agora, confirma o professor, a expectativa é pelo veto integral ou parcial do projeto de lei por parte do presidente Lula. “O ideal seria o veto integral, mas entendo que o contexto político do governo no enfrentamento do parlamento é algo bastante complicado. Nesse sentido, precisamos discutir coisas que não estão numa esfera política, mas em uma esfera de discussão que é para o bem da ciência no Brasil, pensando que temos que ter uma dimensão maior sobre a ética na pesquisa”, encerra. 

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