Relações de diálogo para evitar a medicalização infantil precoce
Relações de diálogo para evitar a medicalização infantil precoce
Dinâmicas e jogos realizados por estudantes e professores da graduação em Serviço Social têm sido capazes de dar novos significados aos momentos em sala de aula.“Entramos em um momento em que a medicalização é a patologização dos comportamentos”. A afirmativa é da docente do Departamento de Serviço Social da UEL, Ana Patrícia Pires Nalesso. À frente do projeto de Extensão “Recriar: o espaço escolar e o diálogo no e pós-isolamento social”, Ana Patrícia e os estudantes de graduação que atuam no projeto constataram que a chegada da Covid-19 e do ensino remoto aceleraram o aparecimento dos comportamentos considerados inadequados ou, por vezes, violentos. Atuando na recuperação do diálogo, ela lamenta que os medicamentos de uso controlado se tornaram “um novo tipo de castigo”, considera, tendo sido utilizados como primeira opção para o cuidado de demandas relacionadas à saúde mental de quem atravessou e atravessa uma das fases mais importantes e difíceis da vida – a pré-adolescência – em meio às restrições de uma pandemia.
O projeto de extensão iniciou as atividades em 2018, com atendimentos semanais aos alunos do 6º ano do Ensino Fundamental de escolas da rede pública. Situadas em localidades com maiores índices de vulnerabilidade social indicadas pelo Núcleo Regional de Educação (NRE) e pelas secretarias municipais de Educação de Londrina, Cambé e Ibiporã, o foco do trabalho eram alunos que apresentavam comportamentos violentos, expressando a sua carência através de socos, chutes, empurrões e tapas constantemente, conta.
Para ampliar o atendimento, os estudantes dos cursos de graduação em Serviço Social e Psicologia que integram o projeto “Recriar” passaram a estreitar um relacionamento também com os pais e professores. Este relacionamento se tornou virtual durante os momentos mais duros da pandemia da Covid-19, o que prejudicou a atuação dos graduandos. No entanto, as reuniões presenciais foram retomadas com o retorno das aulas no Colégio de Aplicação Pedagógica do campus da UEL.
Docente das disciplinas de Política Social e Desigualdade Social, Ana Patrícia tem como foco de suas pesquisas a utilização de medicamentos de uso controlado por crianças e jovens. “O nosso objetivo é fazer circular o diálogo, o discurso, e que todos possam ser ouvidos porque todos têm as suas verdades. Eu tenho que reconhecer em você e você reconhecer em mim. Tem crianças adoecidas que precisam de medicamentos e tratamentos? Tem sim, mas não são a maioria”, avalia.
Alguns casos atendidos nas escolas já haviam sido diagnosticados com condições psicossociais bastante conhecidas, como o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e o Transtorno Desafiador de Oposição (TOD), uma condição caracterizada por padrões recorrentes de comportamento negativo contra figuras de autoridade, como pais, demais familiares e professores. No entanto, o quadro nem sempre estava associado de uma condição social cuja violência estava presente, ou mesmo com vulnerabilidades como a fome.
Para participar das atividades propostas, os estudantes do Ensino Fundamental deveriam respeitar apenas uma regra: não tocar nos corpos dos colegas sem a sua autorização. O objetivo é retomar o diálogo como base e ensinar o respeito ao espaço do outro indivíduo. “Esse é o limite, respeitar o espaço do outro e o seu, porque se você tem isso como fonte, o sujeito se torna sujeito, ele é quem toma suas decisões”, diz a professora.
Atividades
Ex-aluna de graduação em Serviço Social, Maria Gabriela Ferreira da Silva integrou a equipe durante seu último ano de graduação, em 2021. Ela conta que se surpreendeu com algumas vulnerabilidades, especialmente relacionadas à fome. Ao mesmo tempo, concorda que o projeto foi fundamental para a sua formação acadêmica uma vez que pôde entender como estas vulnerabilidades ficam expostas mais facilmente através das brincadeiras e dinâmicas, o que ajuda muito na sua identificação e tratamento. “Fizemos uma dinâmica em que as crianças tinham que falar sobre os seus sentimentos usando um ursinho de pelúcia. Elas deveriam mostrar o que este ursinho estaria sentindo. Uma criança disse que ele estava com fome. Ela exterioriza aquilo que talvez ela vivenciava. Foi bem marcante pra mim”, conta.
Os integrantes realizaram ainda um bazar com brinquedos que haviam sido doados pela comunidade universitária. O objetivo era proporcionar aos alunos um momento no qual eles poderiam adquirir estes brinquedos usando uma moeda própria, permitindo-os usufruir do direito de escolher. “Uma menininha disse ‘eu nunca pude escolher nada na minha vida’”, emociona-se a professora Ana Patrícia. “Foi uma experiência incrível, uma troca. As crianças entravam em grupos e escolhiam os brinquedos que queriam, muitos deles baratos ou mais caros. E o mais legal era o fato de elas saberem que têm direito de escolha porque isso é uma coisa que não é percebida: é tirado das pessoas pobres o direito de escolha”, conclui a professora Ana Patrícia Pires Nalesso.
Uma das atividades mais marcantes para ela teve relação com o que muitos educadores consideram “música para os ouvidos”: os gritos das crianças brincando no horário do intervalo. Se por algum momento podem ser a expressão da alegria e até do diálogo em meio a um processo de negociação ou argumentação em meio a uma brincadeira, o grito também pode estar relacionado a manhas, birras ou chantagens.
Para refletir a respeito, uma roda de crianças foi formada. O objetivo era apenas gritar a plenos pulmões. A professora conta que, enquanto algumas crianças ficaram roucas, outras se depararam com a dúvida. “Por que gritar? Elas também não entendem. Em seguida, houve uma avaliação sobre qual era o sentido deste grito. Se era fazer valer a vontade dele e se tinha algum resultado. Houve uma reflexão com imagens e outras ferramentas”, explica.
Neste sentido, a reflexão visa igualmente criar formas mais assertivas para se colocar e se expressar dentro do contexto da sala de aula, um ambiente onde são exigidas participação e criatividade dos alunos, porém com regras por vezes difusas, avalia a professora. “Teve uma criança que falou para mim ‘eu não sei quando eu posso falar e quando eu não posso’. Porque se essa criança não fala, ela é acusada de não participar. Mas, se ela fala do jeito dela, atabalhoado e atravessado, porque ela não tem o timing, ela também é um problema. Então tentamos trabalhar com isso”, explica.
Para a professora, as salas onde o projeto teve sucesso foram aquelas em que as crianças perceberam que são um coletivo e que as lideranças são necessárias. “Mas não necessariamente de uma só pessoa. Elas podem rodiziar na liderança. E o sucesso é as crianças conseguirem pautar o que elas querem de uma forma que os adultos escutem e entendam”, conclui.