União homoafetiva e divórcio unilateral: professoras aprovam reforma no Código Civil

União homoafetiva e divórcio unilateral: professoras aprovam reforma no Código Civil

Mudanças para o Código que já “nasceu velho” são propostas por comissão de juristas, envolvem Direito da Família, Biodireito e têm o objetivo de modernizar leis de 22 anos.

O Código Civil vigente no Brasil é de 2002, mas a idade de várias de suas resoluções é bem superior aos 22 anos que serão completados em 2024. Isso porque as discussões anteriores à sua aprovação remontam às décadas de 1970, 80 e 90. O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, nomeou em agosto de 2023 uma comissão de 38 juristas com o desafio de atualizar o Código Civil e adequá-lo aos novos tempos. O responsável por presidir os trabalhos é o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão. 

A possibilidade de se divorciar no cartório de forma unilateral e a garantia da segurança jurídica para casos de multiparentalidade e união homoafetiva são alguns dos pontos mais polêmicos desta reforma que, embora de grande impacto social, vem ocupando pouco espaço nos debates do cotidiano. Além da modernização de resoluções, procedimentos serão facilitados e decisões já consolidadas em instâncias superiores serão incorporadas ao novo texto. Para as professoras do departamento de Direito Privado da UEL, Rita de Cássia Espolador e Daniela Braga Paiano, as propostas de alteração são positivas e vão ao encontro de discussões que já movimentam projetos de pesquisa desenvolvidos na UEL. A previsão é que o texto seja finalizado até abril e levado para votação no Congresso Nacional.

Rita Espolador explica que estão previstas mudanças em todas as frentes do Código Civil e, para isso, existem comissões específicas para cada área. “Juristas de cada especialidade fizeram subcomissões envolvendo especialistas de todas as regiões do país”, explica. Isso garantiria, segundo a professora, uma pluralidade de visões, com envolvimento de profissionais de experiências distintas. 

Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, nomeou em agosto o Ministro do STJ Luis Felipe Salomão para coordenar a comissão de juristas (Pedro Gontijo/Senado Federal).

O que é o Código Civil?

Dividido em três princípios (socialidade, operabilidade e eticidade), o Código Civil é definido como um conjunto de normas que delimitam os direitos e deveres das pessoas. Estes direitos e deveres estão diretamente ligados às relações de âmbito privado e se manifestam no cotidiano, em questões como nascimento, casamento, contratos, obrigações e sucessões.

Principais mudanças

Um ponto importante tratado pela reforma é o casamento de pessoas do mesmo sexo. A professora Daniela Paiano explica que o reconhecimento da união homoafetiva, ao invés de vir pela lei, veio pelos “julgados”. Isso porque casos de união entre pessoas do mesmo sexo já foram levados ao Supremo Tribunal Federal (STF) e receberam decisão favorável em 2011. Desde esta data, portanto, uniões têm sido reconhecidas, porém sem constar como regra no Código Civil. “É regulamentada no Código a união entre ‘homem e mulher’ e, com a reforma, a proposta é que se estabeleça a união entre ‘duas pessoas’, tanto como casamento quanto união estável”, define Daniela. 

Daniela elenca pontos polêmicos entre as discussões, retirar do cônjuge o papel de herdeiro necessário é uma delas (André Ridão/Agência UEL).

Também está prevista segurança jurídica para casos que envolvem a multiparentalidade, um dos focos de pesquisa de Daniela Paiano. Reconhecida pelo STF em 2016, a prática permite mais de um vínculo (biológico e socioafetivo) materno ou paterno no registro de um indivíduo. “A multiparentalidade também acompanha uma mudança comportamental, as famílias foram se recompondo”, avalia ela. 

Já para o divórcio, a proposta é para que possa ser feito em cartório e de forma unilateral, ou seja, por apenas uma das partes. Daniela lembra que as discussões sobre o tema vêm seguindo uma sequência de desburocratizações.

“Em 2010, uma emenda constitucional já retirou o lapso temporal para se divorciar e isso foi um avanço. Além disso, o divórcio começou a ser feito de forma extrajudicial, ou seja, em cartório. A novidade agora é o divórcio unilateral”.

Daniela Paiano, professora.

Também promete ser polêmica a proposta de retirar do cônjuge o papel de herdeiro necessário. Na prática, o que se pretende é estabelecer que, em caso de morte, apenas descendentes (filhos e netos) e ascendentes (pais) tenham direito a herança e não mais maridos e esposas. Daniela Paiano exemplifica que se uma das partes de um casal falecer atualmente, seu companheiro (a) terá direito a parte da herança, mas se essa proposta for aprovada, apenas pais, filhos e netos passariam a ter esse direito. “Essa discussão será uma polêmica muito grande”, frisa. 

Até os animais poderão ter direitos garantidos pelo código após a reforma. Isso porque serão encarados como seres sencientes. O conceito reconhece que os animais, e sobretudo os pets, são capazes de ter percepções e sentimentos. Incluídos nas chamadas “famílias multiespécies”, os animais agora podem passar a contar em casos de guarda durante separações, por exemplo, tal qual uma criança. Na redação atual, os animais são vistos como “coisas” ou até mesmo “bens” e a ideia é que sejam encarados de forma mais sensível. “É um status diferenciado para os animais, mas não são pessoas”, lembra Rita ao destacar as diferenças jurídicas que norteiam as novas composições familiares com os “filhos de quatro patas”. 

“Barriga de aluguel”

Rita Espolador também elenca as principais mudanças vinculadas à sua área de pesquisa, o Biodireito. Ela explica que práticas como a reprodução humana assistida e a cessão temporária de útero, a conhecida “barriga de aluguel”, estão entre as que poderão ser regulamentadas pelo Código. “Essas questões eram previstas apenas por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), ou seja, tinham normativas de órgãos de classe e não leis”, explica. 

Reprodução humana assistida e cessão temporária de útero, focos de pesquisa da professora Rita Espolador, também estão no radar de mudanças do Código (André Ridão/Agência UEL).

Agora, constando no Código Civil, possíveis violações a essas práticas também terão implicações jurídicas. Entre estas resoluções está a proibição do caráter lucrativo ou comercial da cessão temporária de útero. Nesse sentido, o próprio nome “barriga de aluguel” contraria as resoluções do CFM e, caso aprovado pela reforma, o Código Civil, uma vez que subentende transação monetária. 

Tendo em vista esta sequência de alterações, em conjunto com outras práticas que passarão a ser regulamentadas por via digital, como contratos, escrituras e assinaturas eletrônicas, o balanço da reforma do Código Civil que fazem as professoras Rita Espolador e Daniela Paiano é positivo. “Nas nossas áreas, as mudanças, sem dúvidas, são ótimas”, diz Espolador. Contudo, elas ressaltam que as alterações não estão definidas, uma vez que passarão por votações tanto no Senado quanto na Câmara Federal, e possíveis emendas e substituições poderão ser feitas nesse ínterim.

Para ambas as docentes, as propostas de alteração são positivas. “Nas nossas áreas, as mudanças, sem dúvidas, são ótimas”, diz Rita (André Ridão/Agência UEL).
Em sala de aula

Daniela coordena para estudantes de Direito da UEL e de outras instituições parceiras o projeto de pesquisa “Contratualização das Relações Familiares e das Relações Sucessórias”, que já conta com aproximadamente 70 participantes vinculados. Ela explica que vários pontos discutidos pelos juristas que estão promovendo a reforma do Código Civil já são analisados “em perspectiva” pelos pesquisadores. “Nosso projeto está de acordo com o que a proposta vai trazer, o que já discutimos vai ser incorporado pelo Código, numa demonstração de que estávamos no caminho certo”, ressalta. 

Já a professora Rita coordenou um outro projeto de pesquisa, recém finalizado, na área dos Negócios Biojurídicos, intitulado “Negócios Biojurídicos: As tecnologias e o Direito Civil”. Os trabalhos desenvolvidos pelos integrantes do projeto também vão ao encontro das alterações do Código, nos campos da biotecnologia, reprodução humana assistida e atos de disposição de código genético. “Já pesquisamos essas questões há mais de dez anos e temos uma pesquisa consolidada acerca de temas que agora passarão a ter base legal”, conta. 

Um ponto em comum lembrado pelas pesquisadoras é a necessidade de atualização dos conteúdos ministrados na graduação. As propostas que serão aprovadas e, posteriormente, inseridas no novo Código deverão ser repassadas aos estudantes, o que demanda atualização e reformulação dos conteúdos por parte dos professores, para que as aulas acompanhem as evoluções do mundo jurídico e a formação universitária se aproxime cada vez mais da realidade profissional.

*Estagiário de Jornalismo na COM/UEL.

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